domingo, 9 de janeiro de 2011

Os anões na fila do supermercado: espetáculos literários do cotidiano





Milena Britto – professora do Instituto de Letras da Ufba

Publicado no A tarde 07/01/2011
O livro “Os anões”, de Verônica Stigger, escritora gaúcha, crítica e professora de arte, é uma das obras mais marcantes da literatura brasileira recente. O que há naquele minúsculo livro está além de simples histórias.
Concordando com o escritor mexicano Mario Bellatin – um dos mais originais escritores da atualidade- que considera o livro contemporâneo uma experiência ademais de leitura, eu encontro, nas páginas dessa obra, os caminhos da experimentação sem limites da relação corpo-literatura-arte-tempo.
Não foi sem razão que o escritor citado sentiu-se entrando numa cápsula comprimida de tempo-espaço onde as histórias, como telescópios, levam-nos a nós mesmos. E acrescento: perversamente nos levam a encontrarmo-nos destituídos de pudores e adestramentos intelectuais.
“Os anões” é um objeto para se ter à altura dos olhos e das mãos; brinca com o “desejo inteiro” do homem pelo livro e seus mistérios. De capa preta, formato de bolso, com todas as páginas encartonadas em papel brilhoso, como se fossem capas, e cantos arredondados, realmente lembrando um livro infantil, traz três partes que orientam os caminhos-instalações de leitura: “Pré-Histórias”, “Histórias” e “Histórias da Arte”.
Mas as três partes não organizam os contos pela ordem de entrada, elas possuem contos aleatoriamente “jogados” no livro, ironicamente nos apunhalando com nossas etiquetas organizacionais e especulando outras possibilidades de compreensão da palavra, sem deixar de fazer a relação desse homem contemporâneo com os seus três “momentos” chaves.
Acontece que essas divisões pregam peças, vertem segredos gigantes em detalhes retorcidos e aparentemente sem valor, mas que, de fato, acabam fazendo um buraco enorme na intimidade do leitor. O conto que intitula o livro e que figura na classificação “História” é uma absurda aventura pelo encoberto sentimento de espanto-piedade-amor-ódio-recusa-fascínio por esses seres minúsculos que passeiam pela vida como se estivessem apenas provocando espanto nos “normais”.
Um casal de anões, que fura uma fila de supermercado, vai despertando todo tipo de sentimento nos clientes até o absurdo linchamento dos dois, com direito a crânio esmagado, sangue farto nas paredes azuis, vísceras espalhadas e coisas do tipo. Numa pegada “pulp fiction”, mas com essa composição literária refinada e com ritmo sinuoso, o conto provoca o leitor quase convulsivamente, como se estivéssemos diante de um espetáculo e não de um conto.
Essa relação com o espetáculo - da arte e da vida - está muito presente em outros contos, quando não no tema, numa associação com outras linguagens, como o cinema. Os contos “Curta metragem” e “Curta metragem II” são de alta verossimilhança cinematográfica, com a mesma particular “perversão estética” dos demais contos. Aí, a descrição dos ângulos da câmera e da preparação de cena de um casal que se joga de um apartamento, num suicídio nonsense como se parecem todos, vai ao limite de nos colocar tão próximos das personagens que acaba prendendo-nos lá, ao ponto de não sabermos mais se não mexemos o pescoço porque morremos, nos aleijamos na queda suicida ou esperamos a próxima ordem do diretor. O conto tem uma continuidade, mas é independente também, e resulta ainda mais absurdo e deflagrador de sentimentos.
Há especulação da “realidade-documento” como experiência ficcional, além de destrinchar os limites de autor-personagem, biografia-ficção, no conto “Imagem verdadeira”, o qual é o fac-símile da certidão da autora, onde se vê o erro do escrivão que a coloca como sendo do sexo masculino. É uma sutil e bem-feita desconstrução da categoria de gênero, oficializado e documentado para além das “verdades”.
O suicídio, o amor, a banalidade das emoções cotidianas, as aventuras, o tempo, a poesia, a arte estão nesse livro “anão”, a exemplo de títulos como “Des cannibales”, “Teste”, “Passo fundo”, “Tatuagem”, Teleférico”, “L’après-midi de V.S.”, “(João Cabral)”, “Caverna”, “Ceia” e outros, além dos que foram citados, numa reeducação estética da apreciação literária, colocando o próprio livro como de fato uma experiência, sendo essa tanto de vida como artística, numa indistinção de níveis entre realidade e ficção, pois o absurdo é aquilo mesmo que trazemos para além de anões ou cenas improváveis.
É esse manancial de sutilezas que colocam o leitor diante de grandes acontecimentos, ainda que sejam eles diminutos e aparentemente detalhes insignificantes, que transborda da obra atingindo os pontos sensíveis de quem se propõe a viver o que lê. Seguindo uma certa tendência que eu já havia observado em Carola Saavedra no seu “Paisagem com Dromedário”, Stigger não teme abordar a literatura como instalação, como espetáculo real, performance...
Um livro elaborado para ver, tocar, ‘assistir”, ler e deixar-se diante do menor de si mesmo, reconhecer-se mesquinho e sem valor; a grandiosidade ali está no espetáculo, sejamos nós os atores ou os espectadores. Os anões não passeiam numa pensão sob o som de saxofone, eles pulam das páginas da grande Lygia Fagundes Telles e de outros contos para a “realidade” outra, a de Verônica (ou a “nossa”), sendo esmagados por esse sádico estranhamento e nossa vil necessidade de emoção.

Os anões/Verônica Stigger/Cosacnaify/60p./$37,00

3 comentários:

  1. Milena,
    obrigada pela doce visita :)

    Estou melhorando já. Me cuidando!!
    Tenho que estar pronta para o próximo semestre, risos...

    Um beijo!!!

    Jenifer

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  2. Adorei seu espaço...Vou voltar sempre...Grande abraço.Passa no Escrevência.

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  3. Interessante a resenha, fica a dica!

    Bom espaço!

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