sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Os retornos, o duplo, as cores e as dores de Frida Kahlo





Essa artista mexicana com sobrenome alemão, sobrancelhas grossas e buço acentuado talvez jamais haja imaginado que o mundo inteiro lhe renderia a fama que hoje possui. Seus quadros viajam aos museus mais conhecidos, seu diário foi lido por milhares de pessoas, seu rosto estampa desde camisetas, jóias, anúncios de venda de carros até publicações de história da arte; sua vida virou filme – dois – e tem inspirado desde ações feministas até pesquisas na psicanálise e coreografias de dança contemporânea. É a artista mais escolhida, hoje, para representar o México de cores vivas, tradições milenares, exotismo e modernidade.
O que, entretanto, faz incomum a história de Frida é a complexidade que envolve o seu trabalho, o seu pensamento, a sua vida cheia de tragédias físicas e psicológicas, o seu gênero. Era já hora de que não apenas via Diego Rivera seu nome circulasse.
Arte, corpo, amor e política marcam o caminho de Frida de igual maneira: intensa. A pintura, conhecida pelos famosos autorretratos, vai ser, ao mesmo tempo, a biografia, o espelho e o pensamento de Frida, e – juntando-se aos mitos femininos mexicanos da Malinche e da Virgem de Guadalupe – é a representação do México bipartido, híbrido, tradicional, primitivo e moderno, trágico e belo. Assim, desde seu fascínio pelo seu duplo – a mesma e oposta ao mesmo tempo como se vê no quadro “ As duas Fridas” – até as escolhas de suas técnicas (como a adoção do estilo ex-votos e retábulos em suas pinturas), cores (vivas e vibrantes), cenários (fauna, flora e iconografia mexicana), e os seus temas, refletem um eterno retorno a algo profundo que se representa pela raiz de sua dor e de sua “mexicanidad”.
Na política e no amor também há “retornos”: Frida rompeu com o partido comunista mexicano e anos depois voltou a filiar-se (há quadros em homenagem a Trotsky e a Stalin), o que também revela conflitos em suas convicções ideológicas; divorciou-se de Diego Rivera e voltou a se casar com ele - apesar de saber de suas traições - o que evidencia a obsessão por esse amor fracassado.
Esses “retornos” de Frida anunciam a um movimento de autoconhecimento e, ao mesmo tempo, de desespero. Artisticamente, vai coincidir com um retorno do Mexico às suas origens indígenas, um recuo da Europa, não sendo a toa que ela integra o movimento intelectual e artístico intitulado “mexicanidad”, que seria o equivalente, em certos aspectos, ao nosso movimento Modernista, embora, em certo momento, a artista tenha sido “assediada” pelo surrealismo – negado por resistência às idéias vanguardistas da Europa. O retorno amoroso e político permitem uma similar analogia: paixão e dor, decepção e refúgio, medo e esperança.
Frida Kahlo, mulher que se expôs inteira e profundamente em seus quadros, não temeu nem a si mesma. Amou homens e mulheres, viu-se e pintou-se homem e mulher, sobreviveu à pólio, aos acidentes, aos abortos, às traições, ao México que vivia um momento político brutal. E, décadas depois de sua morte, o “retorno” de Frida Kahlo vem assegurar que em sua arte apaixonada há uma resistência profunda a “las tragédias, a el dolor, a el olvidamiento”. Viva a Frida,

Publicado no caderno 2+ do Jornal A tarde em 14/08/2010