sábado, 29 de maio de 2010

Ruídos literários



Publicado no A tarde 29/05/2010

Enquanto lia “Paisagem com dromedário”, de Carola Saavedra, não pude evitar de pensar nas construções simbólicas que levam uma literatura a ser de determinado local: brasileira, francesa, cubana... a paisagem, a língua, os temas, as marcas culturais, a origem do autor: sempre se busca alguma essencialidade que nos conecte diretamente ao lugar. Mas a literatura brasileira contemporânea vem apontando bem numa variada universalidade que interessa por muitas razões, afinal, temos uma forte tradição da “cor local” que, do Romantismo ao Modernismo, nos rendeu desde o nosso imaginário brasileiro até a antropofágica relação com o que de fora nos vinha .
Aos 36 anos, a jovem autora Saavedra vai marcar muito bem esse aspecto universal em seu novo romance. Para começar, a autora é uma chilena que veio para o Brasil aos três anos. E, a partir dessa informação, marcada na orelha do livro, seguimos pelo “espaço” da narrativa do romance: uma ilha. Mas nunca sabemos em que ilha a personagem-narradora se encontra. Apenas que é uma ilha vulcânica, com um mar selvagem e alguns poucos turistas. Uma certa vida local com variadas “figuras”: uma marchand e seu marido, um médico, uma cozinheira, sua cunhada. As demais personagens, um artista e uma jovem estudante de arte, são imagens recuperadas na memória da narradora Érika, que vai “montar” e “desmontar” um triângulo amoroso rodeado de reflexões em torno da arte, do artista, do propósito da criação, e da existência.
A ilha pode estar em qualquer lugar do mundo e em lugar algum. O que faz o espaço ser apenas o “modo” de que seja possível a história narrada por Érika, que, na verdade, narra em um gravador as cartas para Alex, famoso artista conceitual com quem teve uma relação profunda. Com técnicas descritivas e rítmicas próximas do Rádio e do Cinema, a autora deixa que o leitor experimente muito daquela história cheia de ruídos e interrupções, ainda que a condução dada pela “narradora” seja controlada o tempo todo, evitando que o leitor escape da história e seja apenas parte de um “happening”.
Todo o tempo, a narradora, enquanto tenta entender a reação de desprezo que manteve com a sua amiga íntima Karen, quando soube que esta tinha câncer, vai insinuar que a obra é uma instalação. Ao relatar para Alex os seus dias naquela ilha, a sua relação amorosa com o veterinário, as conversas com Pilar, a relação estranha com o casal de marchands, Érika também narra a construção de uma instalação literária. É tudo uma farsa e ao mesmo tempo é concreto o que se tem ali: os ruídos dos transeuntes, os barulhos de uma natureza selvagem e forte, a música e a interferência de uma rádio, os passos de alguém, choro, vozes, enfim, ruídos que vão compor os experimentos estéticos das personagens artistas.
Enquanto a história assume as interrupções como parte de sua estrutura, o leitor vai decifrar também as estórias cruzadas, o lugar que não sabemos, os costumes novos que se apresentam ali e que reconhecemos que não são nossos, mas que são igualmente locais, prosaicos, desses que nos encantam descobrir em viagens: Pilar, a cozinheira da casa onde Érika está hospedada, visita com sua cunhada o cemitério, leva a comida preferida do morto, aguardente, fotos, velas, flores para celebrá-lo: um costume forte em países como o México e a Guatemala.
Assim, evitando a superficialidade de uma paisagem de “viagem”, Saavedra constrói uma narrativa interessante, história com tragédias amorosas, buscas pela originalidade da arte, a tentativa de entender-se e retomar a própria identidade, objetivo da narradora, que se diz “dominada” pelo carisma e pelo talento de seu parceiro no amor e na criação artística. Rompendo os limites da literatura com criatividade, Carola mantém a tensão dos fatos, a angústia e a solidão de uma jovem que se procura, se persegue e se enfrenta. E em qualquer lugar.
Essa literatura brasileira sem “cor local” se faz muito interessante para seguir as provocações da própria narradora em torno da arte, definida como “aquilo diferente que está em quem vê e não no objeto ou no contexto”. Fora de qualquer paisagem brasileira, em cima de um dromedário, seguimos tão certos de nosso lugar que nos reconhecemos nas dinâmicas e nas paisagens inóspitas que se apresentam ali.

Paisagem com dromedário/Carola Saavedra/ Cia das letras/167 p./38 reais.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Murmúrios, latidos, caminhos e deserto na obra de Juan Rulfo



“Assim nos deram esta terra. E nesta chapa quente querem que semeemos as sementes de algo, para ver se algo brota daqui. Nem urubus.” (A terra que nos deram, Juan Rulfo)

O caminho de Juan Rulfo é longo; é intercalado de espaços vastos e plenos ainda que aparentemente recortados. A sua escrita, ainda que pequena em quantidade, é superlativa em qualidade e, sobretudo, em seu efeito visceral. Por “Pedro Páramo” e “A Planície em Chamas” somos todos marcados: a desolação como que nos “atrapa” naquelas paisagens internas e externas onde vida e morte se confundem e deixam algo de incômodo.
O México, por trás de suas cores e suas pirâmides astecas e maias, ardia em desigualdades, revoluções, gritos e violência contra os “campesinos” – hoje não é tão diferente -, então, era preciso mergulhar na falta de sentido dos homens e desnudá-los em natureza, desejos, medos e sonhos. Era preciso prender o homem na paisagem desértica de seu próprio temor, de sua própria ilusão e, o mais fantástico: prendê-lo em sua inviolável “realidad”.
Em espaços íntimos, Rulfo se moveu tão silenciosamente a ponto de que, ao ouvirmos as vozes vindas de “Pedro Páramo”, seguimos também um caminho em círculos, inconcluso - mas extenso- em direção às profundas terras, aquelas despovoadas, mas cheia de existência silenciosa que grita. E os gritos de dentro e de fora nos chegam de maneiras diversas, ouvindo o ladrar dos cães enquanto se atravessa o deserto sem fim para achar socorro ou sentindo o que há por trás da simples constatação em um conto sobre mais uma dessas regiões castigadas por toda sorte de infortúnios: “É que somos muito pobres”.
Esse andarilho não se contentou na impressão de suas pisadas nas paisagens mexicanas, quando de uma ponta a outra do país se movia para colher dados para o seu trabalho na agência de imigração do governo: levou o seu trajeto, ou seja, o México interior, para a escrita, mas de forma maravilhosa em seu sentido literário e lingüístico, conseguindo, assim, evitar e suplantar a leitura social imediata e passível de vícios. Unindo o misterioso e o real, Rulfo consegue que, em sua literatura, se revelem as duas mais destacadas capacidades da arte: imitar a vida e suscitar a fantasia. E, no caso desse escritor mexicano, a fantasia e a realidade estão no mesmo plano e obedecem ao mesmo impulso: compreender de maneira íntima o espaço que os homens habitam, seja esse físico ou psicológico. Seja o chão para caminhar ou o caminho sem estradas.
Isso quer dizer um encontro com tudo: a terra, as tradições, as experiências vivenciadas, o ritmo das conversas, o universo subjetivo de onde se escapam os pensamentos; a capacidade de que uma gota de chuva seja descrita numa terra de calor infernal sem que jamais tenha caído, o que não impede que Rulfo nos toque com o efeito dessa gota tal qual nos toca a frase repetida pelo filho mais velho de Fabiano ao receber da mãe a definição de inferno em “Vidas secas”: “Inferno, espeto quente, espeto quente...”
Os textos de Rulfo evitam o determinismo, a explicação simplificada das razões pelas quais os homens se intrometem na natureza a tal ponto de confundirem-se com ela. A miséria, a pobreza, a solidão e o vazio estão vertidos de força que ultrapassa o plano real, e no simbólico se revelam mais. Assim, pode-se perceber a força política de seus textos e jamais esgotar ali a possibilidade de compreensão e revisão da realidade. As terras sem lei, a presença do sagrado, a explicação fantástica, quase surreal, das coisas e a vontade de existir para dominar a terra e vencer as adversidades, do espírito ou do corpo, ou a injustiça dos fortes contra os fracos, fazem com que todas as experiências dos contos de Juan Rulfo sejam possibilidades únicas de se entender esse sujeito que foi escolhido para ficar de fora de qualquer coisa acolhedora; ao contrário, a ele sendo dado ocupar os espaços adversos e percorrer sem fim por um caminho por justiça, por liberdade ou por ajuda.
Transformar a paisagem de seu país em algo interior, impalpável e, ao mesmo tempo, tão vivo e perceptível, é um dos aspectos mais interessantes da obra de Rulfo. O universal de sua obra se encontra justamente ali; todo homem faz aquela viagem, todo mundo com seu deserto, sua planície devastada. Assim que quando vi o curta “Cães”, de Moacir Gramacho e Kibe Adler, inspirado no conto “No oye ladrar los perros”, senti-me tanto aqui, no sertão de Graciliano, quanto lá, terra mexicana que Rulfo me ensinou a chegar escutando vozes, gritos, latidos e murmúrios.

publicado no A tarde 15/05/2010

sábado, 8 de maio de 2010

Jogos, seqüestros e memória no romance de William Kennedy




O romance “O grande jogo de Billy Phelan” é um desses achados literários que nos faz, de algum modo, sortudos e marcados tal e qual um grande jogador de pôquer. O livro faz parte da trilogia conhecida como o “ciclo de Albany”, do escritor americano William Kennedy. Albany, cenário da trilogia, é uma cidade do Estado de New York de onde o autor é originário.
Usando muito bem os elementos de um romance Noir, Kennedy explora o ambiente obscuro, sinistro da pós Depressão norte-americana, mas vai além dos aspectos relativos ao gênero. A narrativa foi escrita em 1978 e é ambientada no passado, aliás, passados, já que várias narrativas surgem de épocas distintas para conferir ao protagonista um lugar de destaque nessa saga familiar.
Billy Phelan é o jogador espetacular, “sortudo” e honesto, dividido entre o mundo underground dos cassinos, botecos, prostíbulos, crimes, e o cenário familiar. Um jovem carismático, querido, que se torna uma espécie de mito quando vence uma partida de boliche com 299 pontos, tendo deixado apenas 1 ponto se perder.
Dessa noite emblemática Billy não mais escapa, e acaba sendo envolvido por uma das famílias mais poderosas da cidade num seqüestro que o deixa dividido entre sua honestidade tão admirada por todos- bandidos e poderosos- e a traição a um amigo provavelmente envolvido no crime. Preferindo ser leal aos seus princípios, vai ser alijado da convivência com amigos, dos bares, de todos os locais que freqüentava, como punição por ter enfrentado o poder dos McCall, família que controla política e financeiramente a cidade.
O romance traz intrigas e paixões envolvendo famílias: poderosas, operárias, católicas ou judias. Aliás, a família para William Kennedy é concebida como o modo de vida que vincula estreitamente os valores morais com o indivíduo. É um núcleo social forte, que se enaltece como uma necessidade mais do que um dever.
Assim, os Phelan – família de Billy - os Daugherty – família do jornalista Martin (que se responsabiliza por “interpretar” Billy em sua própria peregrinação pela cidade) - são membros de uma comunidade à qual também pertence o autor: a proximidade o envolve – e a nós também – e o leva a comungar com um ambiente saturado de lembranças que sustentam cada passo, cada ato. Fachadas, ruas, móveis, gestos, tudo ilumina a história: em Albany não há espaço para o esquecimento. Todos somos levados a desenterrar o passado do lugar.
Billy, o grande jogador, carrega em seu íntimo a falta do pai que se jogou no mundo e que traz dois grandes pecados: matou com uma pedra um operário que furou uma greve e, por acidente, deixou cair seu filho bebê, que morreu instantaneamente. Desse último “crime”, Billy nunca soube e amarga o peso de ter sido abandonado, aparentemente sem razão, pelo pai.
Mas o pai de Billy volta, depois de 22 anos, e encara o filho desde seu lugar de fracassado, de morto-vivo, de miserável, e aviva outra vez mais o passado da cidade, que não é só de Billy, mas de todos os moradores. Francis, o pai de Billy, também pertence à cidade e seus segredos. Compartilhando da tradição européia da construção de sagas, as quais são pouco exploradas na América Latina, Kennedy, depois de William Faulkner, ergue-se como um mestre nas sagas familiares e consegue deslocar o pessimismo pegando uma tradição profundamente humana, sem desconhecer a cotidianidade do mito, e levando-a ao trânsito da universalidade. É tudo história de família.
As dívidas de jogo e de bebida são metáforas, o que está em jogo são as dívidas da alma. As relações entre pai e filho são o esteio das dúvidas, dos mistérios, das traições. Há sacrifícios e cartas na manga, e não há como não se emocionar diante da verdade: as nossas fraquezas são humanas e onde há dor, certamente há amor e necessidade de perdão...
Para o leitor, então, descobrir que Martin se apaixonou pela amante do pai, que o pai de Billy causou a morte de seu filho, que outro pai manda matar quem se coloca na frente do seu rapaz, é apenas descobrir uma porção de si mesmo no expiar de qualquer passado. O que tem de mais encantador aí é que tudo é um grande jogo de William Kennedy com o leitor. Um jogo denso - onde herói e anti-herói equivalem ao mesmo - mas um jogo limpo.

O grande jogo de Billy Phelan/ Cosac Naify/ William Kennedy/ trad. Sergio Flaksman/344 p./ 55 reais.

sábado, 1 de maio de 2010

Mulheres na psicanálise e no divã; Freud no banco dos réus




É difícil que alguma mulher não tenha, em algum momento, chocado-se diante das colocações de Freud, afinal, “inveja do pênis” é tão grotesca colocação que defensor algum de Freud conseguiu amenizar a sua “culpa”, e, ainda que as interpretações contemporâneas considerem o contexto em que foram interpretadas as perigosas – e perversas- afirmações, a memória do pensamento ocidental está contaminada por esses “mitos” e as mulheres serão sempre as mais atingidas. Até a liberdade sexual da mulher conseguiram atribuir a Freud.
Mas é fato que o século XX foi marcado pela psicanálise. Na linguagem, o “inconsciente”, o “ato falho”, “complexo de Édipo”, e outras tantas formas de se falar dos mistérios do comportamento do sujeito estão aí. E Freud também conseguiu, ainda que questionemos, “pousar” (porque penetrar, no consciente uso da palavra que aqui faço, não caberia) na intimidade das mulheres.
É partindo justamente da atuação de Freud no seio dessa “intimidade” que Lisa Appignanesi e John Forrester, em “As mulheres de Freud”, se detêm sobre o papel das mulheres no nascimento da psicanálise. A dupla explora as leituras de, e sobre, Freud, documentos, cartas, fotografias, etc., para construir uma rede em que se possa analisar as acusações de misoginia e de patriarca conservador que via como principal função das mulheres “servir à reprodução da espécie” atribuídas ao pai da psicanálise. Vão, segundo os próprios, dissecar “o caso de amor” que Freud teve com as mulheres para que o feminismo contemporâneo possa, de forma mais completa e complexa, fazer as suas reflexões.
As duas primeiras partes do livro é escrita por Forrester, historiador que se detém sobre as imagens femininas utilizadas nas interpretações dadas por Freud e nos impasses gerados por estas. O autor analisa momentos-chaves da teoria freudiana a partir do lugar que o feminino ocupa na obra e na vida de Freud. Os capítulos abordam o tema da maternidade, o complexo de Édipo, analisa a relação de Freud com a família, com a mãe, o ciúme doentio e possessivo da esposa, e, mais tarde, a relação diferenciada com a filha Anna Freud, a “Antígona”, caçula de três irmãs.
John reconstrói a trajetória de Freud desde criança e preenche os espaços que faltam com observações e inferências que não soam gratuitas. Os capítulos são bem pensados, acessíveis e coerentes. Ao final de cada capítulo de todo o livro há a lista das notas bibliográficas citadas e é interessante ver como a construção dessa “história ficcional” é guiada, principalmente, pelos momentos de tensão ao redor de Freud, sejam esses em sua própria vida ou na repercussão de seu trabalho.
No segundo momento do livro, Lisa Appignaneri vai tratar das mulheres mais importantes na história de Freud, mas o mais interessante é que a autora recupera o lugar dessas mulheres, diferentemente do trato sobre o “feminino” dado por John Forrester, oferecendo a elas uma autonomia e a possibilidade de figurarem como sujeitos de suas próprias histórias – como “analistas” ou como “pacientes”.
Appignaneri investiga diversas fontes, tal como John, mas se mostra interessada no que essas mulheres geraram como “autoras” na relação que tiveram com Freud e, consequentemente, com a psicanálise. Assim, Anna Freud, a filha, a escritora Lou Andreas-Salomé, que se relacionou com Nietzsche e Rilke, a socialista feminista Helene Deutetsche, a princesa Marie Bonaparte – presente no cenário que levou à expulsão de Lacan do movimento psicanalítico francês- , vão ser “escritas” a partir da combinação de suas biografias com o que se sabe de seus pensamentos e atuações, sem que seja deixado de lado o principal: as relações das mesmas com Freud no e fora do divã.
O resultado do livro, o qual eu vejo como mais um produto da “cultura freudiana”, é um espaço mais interessante para se questionar o papel da mulher na psicanálise, plantando-se a dúvida em torno do futuro das práticas psicanalíticas e na própria relação da mulher com o que sobrou daquilo pensado por Freud para elas. Há uma crítica a adesão ingênua às colocações freudianas e um olhar mais sóbrio sobre a repercussão do encontro de Freud com as várias mulheres que passaram por sua vida.
As mulheres de Freud/ Lisa Appignanesi e John Forrester/ Trad. Nana de Castro e Sofia Silva/Record/728 p/ 89,90.
Publicado no A tarde, caderno 2+, 01/05/2010