quarta-feira, 21 de julho de 2010

A canastra mágica de Cortázar




A obra de Julio Cortázar é, fascinantemente, capaz de dar contorno a uma extensa lista de possibilidades humanas relacionadas aos sentimentos, ao humor, às ações e ao cotidiano. Mas, passados mais de vinte anos de sua morte, os cortazarianos podem ser surpreendidos com muito mais. A publicação de um livro com a coleção de inéditos e dispersos (mais dispersos do que inéditos) vai deixar loucos de alegria os que, como eu, apreciam os escritos do autor de “O jogo da Amarelinha”. O livro é a confirmação de que Cortázar continua jogando, mesmo depois de sua morte, com seus leitores, com as casualidades e com a literatura.
Em 2006, como uma canastra mágica, foi aberta uma velha cômoda e, fantasticamente, de dentro dela saíram milhares de papéis em forma de crônicas, contos, artigos sobre arte, cinema, política e literatura, comentários sobre assuntos do cotidiano do autor, discursos, cartas e outros textos de gênero indefinido, tudo com o humor peculiar do autor. O resultado desse achado “maravilhoso” está no livro “Papéis inesperados” que acaba de sair no Brasil.
Muitos dos textos já publicados estavam perdidos e os inéditos estavam ali sem revisão, como se não houvessem mesmo sido preparados pelo autor para a publicação, o que nos coloca ante àquele velho problema ético: se o autor não quis publicar em vida, seria justo fazê-lo depois de sua morte? Aurora Bernádez, a viúva de Cortázar, resolveu que o conflito é nada diante da riqueza que esse material representa e de sua importância para os leitores e estudiosos do escritor argentino. Os leitores só têm se rejubilado com a surpresa, afinal, ler Cortázar “inédito” no século XXI é a maior das “trampas” narrativas da vida.
O livro é dividido em 12 partes: Prosas, Histórias, Histórias de Cronópios, Do Livro de Manuel, Momentos,Circunstâncias, Dos amigos, Outros territórios, Fundos de gavetas, Entrevistas diante do espelho e Poemas.
Os textos que estavam dispersos e que já haviam sido publicados têm, ao final, a data e o meio original de publicação, na maioria das vezes jornais e revistas; no caso dos verdadeiros inéditos, está incluído o ano aproximado em que foram escritos. Apesar de muitos textos haverem sido já publicados, não significa que os conheçamos. Alguns deles são praticamente inéditos no sentido de circulação.
“Papéis inesperados” é um imenso álbum de collage, formado por letras distanciadas entre si por décadas. Ali nos deparamos com um Cortázar de vinte anos no “Discurso do dia da Independência”, de 1938, o maduro em “Trânsito” de 1952, e outro muito mais literário, pouco antes de morrer, em “De trufas e topos”, de 1984. É interessante observar o caminhar do autor também por esses textos desconhecidos que dão-nos a sensação de estarmos construindo uma “epistemologia” do próprio Julio.
A divisão feita no livro pretende uma coerência de temas, apesar de ser isso difícil em se tratando de Cortázar, que pode começar um texto falando de Bergman e terminar falando de asma. Particularmente, tive muito prazer em ler seus contos inéditos como a longa narrativa “Os gatos”, que mergulha no universo adolescente para contar minuciosamente uma quase sórdida história de adultério, incesto, descobertas da puberdade e paixão, tudo soterrado em dois ambientes fechados: a casa da cidade e a casa da fazenda. Também o genial “Manuscrito achado perto de uma mão”, que revela toda a capacidade inventiva do autor, toda a sua sagacidade literária, numa impressionante armadilha temática e narrativa. É espantoso que essa preciosidade não haja sido publicada em nenhum de seus livros, só no jornal El País. Também apreciei as três histórias de Cronópios e as histórias de “um tal Lucas”, uma coleção desordenada muitíssimo interessante e recheada do humor de Cortázar.
Há ainda os textos onde se vê o autor politizado, preocupado com os regimes ditatoriais latinoamericanos. São muitos os textos em que Cortázar fala de Cuba, de Nicarágua, dos movimentos políticos e do papel do escritor nesses assuntos.
O demais é diversificado nos temas, estilo e época que os contextualizam e haveria que se falar de cada um. Resta dizer que em todos esses “Papéis” fica evidente a indiscutível assinatura de Julio Cortázar: os diálogos absurdos, o humor, os jogos, as brincadeiras, a beleza do cotidiano, as idéias simples revestidas de fantasia.
Com esses achados, conhecemos mais do escritor e do homem, seus gostos artísticos, suas recordações de viagens, sua relação com os amigos, suas observações de mundo, seu compromisso político tantas vezes reclamado pela falta. “Papéis inesperados” traz muito mais de um Cortázar cotidiano do que “fantástico”, mas é verdadeiramente uma oportunidade para acercar-se ao escritor que viveu e escreveu como um cronópio. É, ainda que não seja um livro puramente de ficção, uma espécie labiríntica de “Jogo da amarelinha”. Joguemos.
Papéis inesperados/Julio Cortázar/ organizado por Aurora Bernádez e Carles Garriga/Civilização brasileira/ 485p.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

De Macondo ao mundo: desvendando Gabriel Garcia Marquez



“O outono do Patriarca”, “Cem anos de solidão”, “O amor nos tempos de cólera”. Essas e outras obras foram lidas por todo o mundo e o autor, Gabriel Garcia Marques, expoente do realismo fantástico, é um dos mais conhecidos da Literatura latino-americana, assim como a sua “Macondo”. Agora, curiosamente, não é uma obra do escritor colombiano, ganhador do Nobel, que vem causando rebuliço e sim uma biografia não autorizada, mas, “tolerada” por ele.
O hispanista inglês Gerald Martin, Professor Emérito da Universidade de Pittsburg, é o autor da extensa biografia, resultado de uma pesquisa de quase 20 anos. As fontes entrevistadas, mais de trezentas, vai de ex-amantes até o próprio Gabriel, que chegou a dizer que não se daria ao trabalho de esclarecer nada.
Além de entrevistar o escritor e sua família, Gerald consultou muitas obras, documentos, cartas, artigos, conversou com estudiosos da obra do colombiano e mergulhou na biografia que o próprio Gabriel escreveu há alguns anos para contestar a veracidade das informações ali colocadas.
A biografia levanta outra vez a discussão do limite entre realidade e invenção, que, na literatura, o termo ficção parece ter mais razão de ser. As informações e fatos colhidos, de qualquer maneira, dependem da interpretação de quem escreve para fazer sentido. Está aí a resposta: essa biografia não seria mais ou menos verdadeira do que a de Garcia Marquez, embora, obviamente, o que a invalidaria seriam as distorções que pudessem haver.
Não parece ser o caso, embora haja ali um apelo de impor uma leitura frente aos buracos da vida do Gabo, aliás, do início ao fim do livro, é assim que Gabriel é tratado por Gerald: Gabo.
Apesar dos muitos dados, a leitura flui. As páginas mais complicadas são as que correspondem às origens familiares, uma saga emaranhada cujas raízes estão no povoado de Aracataca, e cujas origens Martin rastreou, basicamente, através de relatos orais dos descendentes. Ao mesmo tempo, o autor vai traçando a história de uma Colômbia diversa e complexa, e depois de “ o bogotazo”, violenta.
A infância de Gabriel, onde se mantém uma certa obscuridade, foi difícil. A mãe, que “abandonou” o filho - criado pelos avós maternos até os 7 anos - logra recuperar um espaço de aproximação na adolescência do primogênito, mas o pai é sempre um homem distante.
As mudanças constantes de ambientes, acompanhando o movimento da família e de Garcia Marquez, torna dinâmica a narrativa, que deixa entrever a fixação de certos mitos que foram parar nas obras de Gabriel, sobretudo, em “O outono do patriarca”, onde fatos de sua vida mais aparecem.
O jovem Gabriel é descrito como um rapaz mulherengo, boêmio, embora apaixonado pela leitura, pela escrita. O casamento com Mercedes - cujo primeiro encontro, quando esta tinha nove anos e Gabriel 14, fica escondido na obra- causa uma transformação radical no escritor que passou inúmeras dificuldades econômicas - de não ter o que comer e ter, por exemplo, de penhorar a máquina de escrever que ganhou da mãe ou dividir o pão das prostitutas – até chegar à Universidade e iniciar as primeiras poesias, começar a carreira de jornalista em Cartagena. Tudo o que pode, Martin documenta nestes relatos minuciosos.
Há também a relação de Gabriel com Tachia, a atriz que conheceu em 1953, em Paris, cujo caso termina em aborto. Antes de Paris, aparece a figura de Ramon Vinyes, o escritor que é personagem em “Cem anos de solidão”. Entre bebidas, farras e bordéis, Gabriel descobre Joyce, Faulkner, Kafka e ainda o folclore colombiano. Gabo interessa-se pelo cinema italiano, o marxismo, a política, e vai, aos poucos, se transformando em um homem atento ao mundo. Inclusive, esse é um dos méritos da biografia: analisar as etapas sucessivas na vida do autor.
No México, o encontro com Carlos Fuentes o deixa inseguro, pois achava o amigo mais inteligente do que ele. E no DF Gabriel leva um “soco” de Vargas Llosa, segundo o que foi “investigado” pelo autor de “Uma vida”, por ciúmes da mulher de Mário.
As primeiras partes do livro são sobre o período antes da fama; da escrita dos seus livros primeiros; depois do sucesso, as análise sobre o posicionamento político e o ativismo tornam mais objetiva a escrita e com menos novidade. Mas está ali a amizade com Fidel Castro, Omar Torrijos, Felipe González, sua ida a Cuba para fundar a Escola de Cinema, suas preocupações com a guerrilha colombiana. A biografia – que vai da infância até os últimos anos - aborda desde a busca pelo poder, pelo qual Gabriel se sentiu sempre atraído, até o reencontro com o pai, muitos anos depois do sucesso e, por fim, um último encontro de GGM com Martin, o autor da biografia “tolerada”.
Gabriel Garcia Marquez: uma vida/Gerald Martin/trad. Cordelia Magalhães/ Ediouro/814 P.

Publicado no caderno 2 do Jornal A tarde em 11/07/2010