domingo, 28 de novembro de 2010

Encontro com Benjamin Moser, biógrafo de Clarice, no Instituto de Letras da UFBA



Para quem perdeu a noite da Livraria cultura com o escritor Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, uma oportunidade a mais. O escritor estará no Instituto de Letras da UFBA, às 13 hrs do dia 29/11, segunda-feira , para conversar sobre a sua obra, considerada a mais completa biografia da autora brasileira.
O quê: Benjamin Moser
Local: Instituto de Letras
Data: 29/11
Horário: 13:00
Promoção: Grupo Rasuras de estudos de linguagens/ Departamento de Letras Vernáculas/Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras/Instituto de Letras da UFBA

domingo, 21 de novembro de 2010

A poesia em Tarja Preta






Publicado no caderno 2+ do A tarde em 20/11/2010

“Minha mãe me chamava de mestiço/a professora já dizia moreno/a vizinha falava mulato/e o meu pai achava tudo engraçado.”


Os versos do poema Qual é a cor? do poeta, MC e cantor Zinho Trindade, bisneto de Solano Trindade, desperta os cantos abafados da história mal contada: o racismo é invenção, ninguém viu e ninguém vê.
Nas estrofes, a verdade de quem se descobre negro enquanto percebe que sua vida vale menos - porque sua cor é outra - instaura-se na memória como canto: “Quando eu era pequeno, eu não sabia/Eu não sabia, eu não sabia não/Não entendia a cor/Qual o valor/ O porquê brigar e o porquê amor”.
Com prefácio de Nelson Maca, Tarja preta é o primeiro livro de poesia de Zinho Trindade e, seguindo o tom da literatura periférica - ou marginal-, localiza no presente temáticas e propostas. Os versos insistentes denunciam o Brasil injusto, racista e violento de muitos: “Terras paradas, latifúndio vazio.../Tupi, Pataxó, Xavante, Pancaruru, Cariri/Tupinambá, Carijó, Funiô, Carajá/Potiguá, Tupinajé, Caeté, Ianomâmi/De 10 milhões a 280 mil./Ser humano em extinção/O moleque, o fuzil/Na pátria que ninguém viu.”
Cordialidade não há naqueles versos da literatura cunhada por Nelson de “Dissidente”; há, contudo, a crônica cotidiana da luta, o “retrato de uma guerra nada particular”, o ritmo dissonante do hip hop, as batidas do maracatu, o ronco dos tambores. Há ainda uns versos excepcionais - em meio a outros nem tanto- e uma outra história embalada em falares populares, português coloquial e musicalidade afrobrasileira.
As pegadas contemporâneas dos mixies improváveis se costroem nos versos que deslizam do presente, deixando, a uma só vez, vestígios da ancestralidade do povo negro e compreensão tenaz da realidade bruta do nosso tempo: “Escreveu não leu, o tiro comeu, menor se fodeu e a/ polícia venceu.”
A poesia de Zinho Trindade “brota do campo da batalha”, como diz Maca; é armada; a lança afiada de um guerreiro que, além de estar pronto para a batalha contra o sistema bruto e violentamente racista, sabe que há que se dominar o inimigo dentro de si mesmo, vencer qualquer vestígio da outra história: “Quantas vezes/Não me senti um nada/Um mísero nada./Um cigarro queimando, /Morrendo lentamente/São nesses momentos que derrubamos o Golias/Que nos habita.”
Zinho sonha, canta, denuncia, grita, acorda Solano, o outro Trindade. E com saber agudo, entre os trampos dos pretos, a paulada da história traidora e a força de sua negritude, o poeta ainda arregaça com ironia cáustica o resultado do progresso elitista no poema My Machine: O homem/É a sua própria máquina/Seu espelho/ Pequeno para si próprio/E a sua ambição/ Será a degradação.” Que esse Mestre de Cerimônia continue firme na trilha – urbana – da poesia. Que o diálogo com Solano prossiga, a poesia venha, a denúncia se faça, o soluço continue e o zumbido das balas transforme-se em outros “ZUMBIdoS”. Que o poeta Zinho Trindade, faça, sim, barulho. De pássaro-preto rebelde.

Tarja Preta/ Edições Maloqueiristas/ 83p. 2010/R$15,00

domingo, 14 de novembro de 2010

Uma carta de Kafka ao pai, uma canção de ninar: a memória de um filho


Publicado no caderno 2+ do A tarde em 13/11/2010

“Ao se dirigir a seu pai, Hermann Kafka, Franz não só me roubava minhas palavras, mas usurpava meu lugar de filho. As mesmas palavras que, em minha garganta, provocavam feridas que me impediam de falar, ditas por Franz descerravam a verdade”.

Não sei o quão verdadeiro é Ribamar, de José Castello, em termos de fatos; não nos faz falta saber. Porque há um caminho verdadeiramente incômodo a ser seguido nessa obra tão peculiar, mistura de memória, ficção, biografia, ensaio.
O “romance” sinuoso é escrito sob a escala de uma canção de ninar, transformada em partitura, com cada seguimento guiando os capítulos em tema, tempo, ritmo, sentimento.
Engenharia textual das mais finas e fortes, dando ao leitor completa incursão à intimidade do sentimento de um filho para com um pai cuja “ausência” – ambígua – já não deixa espaço para enfrentamentos concretos, restando à memória o dever de resolver esses espaços de amor, assombro, ódio, admiração, desconhecimento, mágoa, falta.O crítico que escreve para a Bravo, o Prosa e Verso e o Rascunho, admirado por seus textos de acento proeminente, literatura farta e escrita que faz de si mesma um caminho aos temas que trata – jamais fechando ali as portas e sempre se colocando significativamente no texto – já ganhou um Jabuti e escreveu sobre João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Moraes experimentando o gênero biográfico.
Mas esse romance sobre José Ribamar, seu pai, é muito mais do que uma biografia. Por seu caminho de construção, é um texto sobre outro ou um texto ligado a outros; um cruzamento de sentimentos que vai do assombro à raiva, do amor profundo à frustração, da pena à punição, à descoberta do esquecido. E ainda põe em evidência as formas ocidentais nas quais o sujeito guarda suas histórias na ânsia de retê-las, como diários, cartas, notas, dicionários que oferecem palavras ao infinito, bíblia que oferece mitos religiosos e mitologia clássica que segura arquétipos: em todos os textos, o nosso. Mas quais são seguros para nos guiar àquilo que desconhecemos, embora tenhamos vivido?
O autor encontra em Franz Kafka uma coincidência de sentimento em relação ao pai e usa Carta ao pai, do próprio Kafka, para analisar a relação deste com o seu progenitor.
Ambos, o narrador e Kafka, encontram-se muitas vezes nas semelhanças de sentimentos e de desejos – “só consigo escrever porque faço de Kafka um biombo” –, e Franz acaba sendo o espelho, o duplo, a sombra desse narrador que vai analisando a relação de Kafka com o pai, Hermann, enquanto reconstrói os fatos da vida de seu próprio pai e, mais do que tudo, encontra pedaços de vida sua e desse pai, encontra sentidos e sentir, restos de vida esquecidos ou ignorados pelo medo.
Descobre a sua ira e o seu amor contra aquilo que todos acabam sendo: pais e filhos.
A viagem que o autor fez ao Piauí, terra de José Ribamar, não traz histórias completas e sim partes do que poderia ter sido – ou foi –, mas vai revelando a luta do escritor para sedimentar um caminho, para concretizar em ação aquela busca sofrida de conhecer e se recompor na história “de” e “com” o pai.
Usando a literatura para pensar nos mistérios da memória, sendo essa a da vida, dos sujeitos e da própria literatura, o autor arrisca-se na edificação desse romance de encruzilhadas, de mil pontas, que vai de Tirésias à Kafka, passando por Defoe, Castro Alves; que sai de cartas e diários e vai à canção de ninar, recuperada anos depois, com uma voz crítica analisando etapas, mas mostrando ser impossível controlar o fluxo da própria história: “A escrita é traiçoeira, você pensa que escreve uma coisa e escreve outra”.
Com Kafka, Ribamar e Castello, o leitor compartilha aquilo que nunca nem pensou; encontra sentido em páginas nunca lidas e em respostas nunca dadas – quem sabe se o pai de Kafka leu a carta do filho? Quem sabe se o pai de Castello leu o livro Carta ao pai dado por ele? a quem servirão essas páginas erguidas da memória e da fantasia? – O leitor chega assim muito próximo ao caminho do narrador que oferece com verdade o seu lugar, o seu propósito, as suas dúvidas, ainda que ponha na mesa a falta de resposta:
“Talvez você não entenda. Mesmo ignorando minhas razões, percebe que me abstenho de ser. Isso me basta.”
É um livro denso e farto, bem escrito, embora difícil e ao final nos chega, não por Kafka, como uma carta “não escrita” ao pai.
Ribamar é uma aventura dura aos sítios obscuros da relação entre pai e filho, é um texto de uma humanidade cortante, ríspido muitas vezes, absolutamente embebido em amor em outras; um texto que comove por todos os lados, que se revela dentro e fora, que dá à palavra todas as formas de paixão, que desvenda e homenageia a literatura em seu lugar mais simples: a de se relacionar com o homem, de servir a ele, de falar por ele, com ele. E com seu pai.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Poeta, Mc e ator Zinho Trindade lança livro em Salvador

Hoje 09/11 Lançamento Tarja Preta -UFBA -Salvador -Bahia 17H
O grupo de pesquisa Rasuras: estudos de práticas de leitura e escrita e o Sextas poéticas Sarau convidam para o evento de lançamento do livro Tarja Preta de Zinho Trindade, nesta terça-feira, 9 de novembro, das 17:00 às 19:00, na sala 110 do PAF 3 (Campus de Ondina da UFBA).

Zinho Trindade é poeta, ator e MC Free Style. Herdou a tradição familiar na pesquisa e divulgação da cultura popular afrobrasileira. Bisneto de Solano Trindade, poeta popular e neto de Raquel Trindade que se mantém à frente do Teatro que leva o nome de seu pai em Embu das Artes (SP), Zinho Trindade vivencia cotidianamente as raizes culturais brasileiras. É integrante da banda O Legado de Solano onde mistura música contemporânea com ritmos afrobrasileiros. Tarja Preta é o seu primeiro livro publicado.
(Texto de apresentação retirado da orelha do livro Tarja Preta)
PROGRAMAÇÃO:
17:00 – Exibição do documentário Solano Trindade: 100 anos (direção: Alessandro Guedes e Helder Vieira).
17:40 – Palestra de Zinho Trindade sobre sua atuação político-artística e sua vinculação genealógica ao trabalho iniciado pelo seu bisavô, o poeta Solano Trindade.
18:20 – Lançamento do livro Tarja Preta (valor: R$15,00) ao ritmo dos poemas recitados pelos jovens integrantes do Sextas Poéticas Sarau do ILUFBA.
Entrada gratuita!

domingo, 7 de novembro de 2010

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Cortázar nos perde em Paris dos anos 60 e encontra-nos numa estação de trem


Publicado em 30/10/2010 no caderno 2+ do Jornal A tarde

“E já que vamos contar, é melhor pôr um pouco de ordem. A gente desce cinco andares e já está no domingo, com um sol inesperado para novembro em Paris.”
O desejo de pôr ordem no caótico emaranhado de fatos, expresso pelo narrador de “As babas do diabo”, que inspirou o filme “Blow-up” do Antonioni, não é um capricho qualquer. O fotógrafo, personagem do conto, duvida da realidade que seus olhos pensam ver mediada por uma câmera e a poesia dramática da vida se ergue sem imagens: essas são tão irreais que se confundem com as palavras.
São tantas possíveis maneiras de “desnarrar” o que se pretende contar que as páginas viram cenas de cinema; estas se transmutam em algum jazz extraordinário, para bons ouvidos, que depois explode em literatura, que inventa cidades, que devolve o tempo ao homem, que vira leitor, que redescobre o livro para nele se reinventar e começar outra vez. Essa realidade porosa vai escancarar a complexidade da vida e do ato de viver a vida num descompasso alucinante.
Os contos de “As armas secretas”, de Julio Cortázar, lançados pela primeira vez em 1959, são peças nobres da literatura. Cinco histórias que levam grandes projetos literários voltarem a ser pensados, do idealismo romântico à fragmentação pós-moderna. O elemento fantástico, tão peculiar na obra cortazariana, não surpreende em seu estado de absurdo, mas por ser colado à realidade invisível e emanar da simplicidade contida no cotidiano.
Como se desmontasse várias camadas de literatura, e de fantasia, o autor, no conto “Cartas de mamãe”, esmiúça o universo psicológico da personagem principal, um filho que recebe cartas da sua mãe, e leva o leitor a um percurso com o próprio narrador. As cartas chegam a um cotidiano em Paris, vindas de Buenos Aires, do cotidiano de uma mãe solitária. Narram cotidianidades e mantém segura a vida de todos os envolvidos, incluindo a nós, leitores.
Um dia, uma palavra na carta, numa frase corriqueira qualquer, um nome próprio fora do lugar, um equívoco, desarruma tudo: a vida, os dias, o conto, a literatura. Um morto vai chegar no trem das 11:45, um irmão culpado pena entre uma e outra carta da mãe que “ está louca!” e escreve coisas absurdas, uma esposa mente para o marido e sonha com o falecido cunhado, uma traição inventada pela nossa desconfiança e um escritor revelando segredos da escrita e de seu ofício. Uma carta, uma palavra fora do lugar esperado e com isso a literatura construindo o impossível.
A delicadeza dos sentimentos das personagens algumas vezes se transforma em ironia das mais finas, e o leitor vai adentrando-se nas nuances variadas dos fatos. Em “Os bons serviços” o narrador introduz uma ambígua naturalidade aos mais absurdos fatos que acontecem a uma senhora diarista que serve à burguesia francesa. Cuidando de cinco cães enquanto os patrões se divertem numa festa, a personagem descobre, antes de nós, que tudo é sonho e pesadelo, que as realidades se confundem porque somos presos a elas. Entre a trágica situação dessa miserável e quase abandonada diarista, todo o espetáculo da morte se revela: contratada para chorar um defunto, ela se depara com o único ser que tivera com ela um gesto de carinho. E suas lágrimas falsas se tornam verdadeiras, embora ela jamais saiba o que é aquilo tudo, quem são aquelas pessoas que a levaram de uma sala com cães a um velório...
O livro vai se desdobrando em percursos inesgotáveis. Sobrevivemos aos contos pensando serem extensão de nossas vidas, de nossos sonhos. Os aspirais eróticos de cenas que nada possuem de explícitas fazem-nos crer numa força secreta, num mundo secreto, que nos deixa cegos diante do caminho sem fim. A ruína, o desejo, a fantasia e a realidade estão ali, no livro de Cortázar, mas poderiam, como disse Arrigucci Jr., estar num Juan Rulfo, num Borges, num Onetti. Poderia pelo fantástico da obra, pela genialidade da escrita. Mas não pela bem truncada prosa, não por esse jogo - que sempre funciona por mais que o saibamos - do escritor consciente brincando com o fantástico e um falso descontrole. Os cinco contos nos chegam desafiantes, como a vida desafiou o artista Cortázar a sobreviver e escrever naquele seu – nosso – tempo. Ouçamos um jazz e salvemos do suicídio qualquer personagem, enquanto outros caminham em nossa direção na estação de trem. Em Paris.

Do Le Monde para a literatura: “esquisitas” palavras da pornografia erótica dos corpos ao desejo político de ser




Publicado no caderno 2+ do jornal A tarde
Fabiane Borges e Hilan Bensusan possuem muitas singularidades: os dois são parte de um “coletivo” de dois, o “Esquizotrans”, assinaram a coluna “Políticas Esquizotrans” no caderno Brasil do Le Monde diplomatic; ele é professor de filosofia na Unb, ela pesquisa “micromídias” de “maneiras megalomaníacas”; ele e ela são “esquisitos”. Isso pode ser bom, como o senti ao ler o trabalho literário dos dois em seu primeiro livro “Breviário de pornografia esquizotrans: para pessoas do avesso”, com prefácio Pedro Costa, da banda queer “Solange Tô aberta”.
A literatura e o corpo, o corpo e o gênero, o gênero e a sociedade têm sustentado uma relação complexa: a pedagogia do controle sobre o corpo sempre contou com a palavra e esta quase sempre serviu à manutenção do conhecido par “homem x mulher” – historicamente prevalecendo a superioridade de todo o aparelho masculino. A literatura, como a filosofia, sempre esteve atrelada ao espírito do momento, tendo, portanto, deixado-nos bem servidos de modelos ou questionamento dos modelos.
Acontece que o corpo – e a literatura – anda escapando às totalidades que, substituídas a cada par de décadas ou séculos, ajustavam-no à cena. Diga-se de passagem que, em cada momento, houve aqueles que causaram fissuras absurdas no corpo, na cena literária, na linguagem, na filosofia, na moral. É por aí que passeiam um Fernando Vallejo, um Walt Whitman, um Lezama Lima, Um Guimarães Rosa, um Nietzsche, um Foucault, uma Judith Butler, uma Beatriz Preciado.
O livro de Fabiane e Hilan vem escrachar a cena arrumada de um papai-mamãe bem literário, arrebentar calcinhas com pau intumescido coexistindo com vagina lubrificada, peitos e bundas alternando-se na cena do prazer, hormônios questionando tudo e se impondo à medicina, à vida compreendida parcamente a partir de duas – como não enfatizar – duas míseras categorias de gênero e só uma de desejo: o heterossexual. Mas, o que o “Breviário” vai trazer de mais intenso é um reconhecimento singular do transsexual, ampliando-se, inclusive, o “trans” para as condições de sexo, gênero, desejo ou identidade que se encontram diante de fronteiras, que escapam a qualquer prévia categoria ou mesmo espaço. E isso de forma literária, ricamente elaborada em imagens, metáforas, linguagem.
Há uma perversidade sem tamanho no tempo esse em que vivemos: entre tanto sexo explícito na TV e hit de axé e funk leiloando os corpos juvenis femininos, um recrudescimento moral impede o olhar escancarado e saudável sobre os corpos – veja-se a discussão sobre aborto da cena política atual – e a arte permanece engessada quanto aos limites de representação artística, humana, sexual e política dos corpos que abarcam tantas singularidades, explícitas cada vez mais, felizmente.
Os textos de “Breviário”, alguns podendo ser considerados contos e outros transitando em fronteiras textuais, trazem uma proposta estética claramente vinculada aos estudos teóricos “queer”, o que, a princípio, poderia enfraquecer o projeto literário. Particularmente, sou resistente a projetos artísticos de engajamento, salvo os casos que logram se libertar do discurso. Arte é arte, podendo ser política também. Mas não quero, quando leio literatura, um discurso político ou um relatório de ação social, quero emocionar-me, rir, transformar-me, sonhar, chorar, comover-me e compreender aquilo que desconhecia.
Foi assim quando li “infidelidade e descentralização”, “diferenças sexuais agudas”, “em cima do morro dos prazeres ou me monto herculina barbitúrico”, “amor no lixão”, “brenda comendo david”, “puta ontológica”, “projeto de duas feministas velhas” e outros textos do livro, o que me diz que o encontro prévio com as teorias queer não minimizou a criatividade, o roteiro artístico, o desejo e a sensibilidade dos autores.
No livro, é tudo sexo, explícito ou não – a depender do que cada um concebe como explícito e como ato sexual, afinal, Eva comeu uma maçã e mudou o destino da humanidade, a “virgem” Maria engravidou, os anjos não têm sexo e por aí se vê uma série infinita de “anedotas sexuais” presentes na nossa história e desprovidas de órgãos -, sim, é tudo desejo e sexo no livro do coletivo esquizotrans, mas, mais do que tudo, são gritos originais de socorro para as prisões dos corpos e para a arte.
A linguagem é um arco sem curva na maioria dos textos, um vocabulário “sexual” corajoso, mas, sobretudo, um desnudamento das categorias de palavras; o ritmo e o encadeamento da prosa oral vai colar-se perfeitamente ao momento contemporâneo de tanta velocidade, medicina, tecnologia, crise da ecologia: as palavras vão saltando e revelando movimentos, catarse, ironia; vão reacendendo a curiosidade filosófica, filológica, literária; vão reativando o homem na sociedade das máquinas, essas sejam as do mundo capitalista sejam as das políticas fracassadas.
A sensibilidade presente nos textos se revela tanto na crueza erótica e pornográfica dos encontros entre seres sem categoria, quanto nas sutilezas dos sentimentos de moças do interior sem dentes, escravas do ambiente patriarcal, sem direito a desejo ou mesmo a mirarem seu sexo com liberdade, como se vê no conto “o anel brilhante de elfriede jelinek”. Os trans e os intersexos ganham corpo (que no cinema o filme XXY já revelou) e desejo, possuem órgãos, os dois ou um só escolhido ou imposto, e vão escrever outra história para os que, também na arte, ficaram apagados, escondidos, desprezados, concertados, reescritos, disfarçados.
As esquisitices da dupla Borges e Bensusan – esquisito aqui mais para o sentido da língua espanhola – são bem-vindas, pertinentes. Literariamente há muitas propostas interessantes (outras não, o que também é bom de se ver: a literatura demanda muito esforço para se erguer e os autores, conscientes disso, simplesmente jogam-se livres e corajosos no desejo, o que por si só já atende a um princípio da arte: é preciso gozo). Ver os trans, as lésbicas, os gays, os heteros com desejos outros, com idades tantas, com subjetividades variadas, aflorarem pornograficamente é, por si só, uma experiência interessante. Ver a literatura chegar para a diversidade do desejo é ainda melhor. A pornografia é muito mais do que sexo explícito.

“Breviário de pornografia esquizotrans: para pessoas do avesso”/Editora Ex libris/154p./R$35.

Sob o verbo, a literatura


publicado no caderno 2+ do jornal A tarde

A literatura é uma das artes que mais vínculos possuem com a crítica. A própria relação de metalinguagem entre ambas já se configura um íntimo e arriscado percurso que se constrói na articulação de interesses, conhecimento, desejo, desassossego, projeção, descoberta e reinvenção, elaborada na mesma mágica ferramenta: a palavra.
Como não se trata de falar de uma outra linguagem – como o é com as artes plásticas, a fotografia, o cinema, a música – a confecção desse texto novo, que se predispõe a iluminar o outro, pode ser uma ação desastrosa ou bem-sucedida, uma vez que é esse o texto que se propõe, sendo aqui imediata, a retirar da penumbra ou manter luzindo o outro.
Arthur Nestrovski, com a sua mais recente publicação “Palavra e sombra: ensaios de crítica”, chama-nos a atenção para o status quo da crítica literária, seu papel, seu percurso, enquanto que ele mesmo vai construir um corredor de luz sobre algumas obras sob o viés literário-artístico-cultural-político.
Na apresentação do livro, Nestrovski faz um panorama rápido da crítica literária brasileira, destacando os momentos de mudança – como a da década de 40, no rodapé dos jornais, “entre a crônica e o noticiário”, ou a de 60 com a crítica scholar, oriunda dos especialistas universitários – e apontando, inclusive, para uma reflexão acerca da crítica contemporânea e sua ainda existente relação com os jornais. Nomes como os de Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Antônio Cândido, Mário de Andrade e outros vão surgir pontuando-se uma história cultural e intelectual à parte e revelando-se um outro cânone: o da crítica literária.
Os ensaios críticos presentes em “Palavra e sombra” demonstram não tanto um mergulho nos sendeiros de construção literária dos autores em destaque – João Cabral de Melo Neto, Modesto Carone, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Luís Francisco Carvalho Filho, Roberto Schwarz, Philip Roth, Saul Bellow, John Updike, Don DeLillo, Kazuo Ishiguro, Richard Powers, Pankaj Mishra e Vladimir Nabokov – mas, especialmente, um entendimento tanto da cena literária que suporta as obras como da relação das mesmas com o movimento cultural, intelectual e político do contexto em questão.
Arthur constrói o seu texto com cuidado literário, escolhendo imagens que vão dialogar com o discurso que produz sobre a obra lida, parte do artifício de trazer das sombras as palavras. Algumas vezes abre o seu texto com narrativas, por exemplo, de como, quando e por quê estava lendo determinado autor, ou narra-nos uma imagem do livro lido antes de adentrar-se pelos caminhos críticos. Mais comum, entretanto, é abrir seus textos com uma citação ou pequena frase-mote que contém o mistério e a tensão de uma idéia que vai percorrer na obra.
A leitura de Arthur Nestrovski ultrapassa bastante os limites do texto e revela um conhecimento profundo da cena literária e cultural contemporânea. O livro se divide em três partes, uma da cena literária brasileira, outra da de língua inglesa e uma terceira de três produtos artísticos distintos: um filme (“Um filme sem imagens”), um livro de fotografia (“Êxodos”) e o teatro Vertigem (“Apocalipse I e II”).
Apesar de cada texto trazer uma série de referências – autores que dialogam com os escritores, ecos literários das tradições em jogo, interseções políticas, filosóficas, artísticas e culturais – os ensaios de Nestrovski se mantêm equilibrados e lúcidos, sem o peso erudito gratuito que deixaria carregada a leitura. O crítico é generoso em fornecer muitas das suas pistas de leitura e repertório e, o mais interessante, apesar de oferecer um texto literariamente bem cuidado, não deixa desaparecer de vista e nem tenta suplantar a obra lida.
Poucos são os críticos que pontuam seus textos com conhecimento refinado e demarcação honesta do lugar de leitura – entre eles vale aqui ressaltar que o trabalho do crítico Antonio Marcos Pereira é, na cena atual, um dos mais férteis e sólidos nesse sentido – e Arthur Nestrovski não apenas o faz como não se deixa cair na armadilha de seu próprio trabalho; ele mesmo escritor, enquanto crítico se impõe a tarefa de desvendar os mistérios dos textos e a sua relação com determinados assuntos/temas/acontecimentos/situações/histórias desde um lugar intermediário, buscando dar à obra uma certa luz, bem medida para não ofuscar.
“Palavra e sombra” é para mim uma bem-sucedida coleção de ensaios, funcionando ela mesma como farol que auxilia o encontro de caminhos, o diálogo honesto do crítico com a obra, complexa que é a tarefa da crítica e seu papel para a literatura. Afinal, retomando as palavras do próprio Arthur: “Se literatura fosse transparente, não seria preciso crítica. Se o mundo fosse transparente, aliás, nem seria preciso literatura. Palavras e coisas coincidiriam de modo absoluto, na luz de uma verdade sem sombra.”

Palavra e sombra: ensaios de crítica/Ateliê Editorial/R$ 35/165p.

Aventura, mistério e denúncia na literatura para os jovens


Publicado no caderno 2 + do jornal A tarde


O meu imaginário e o de muitos leitores certamente está povoado por clássicos como “A ilha do tesouro”, “As aventuras de Tom Sawyer”, “O escaravelho de ouro”, “O jardim secreto” e uma série de outros que vai da literatura mundial à brasileira com Monteiro Lobato e tantos outros, incluindo os da coleção vagalume. Certo é que jovens gostam, sim, de ler e de colocar a mente à prova de complicadas redes de mistérios e aventuras. É só desligar a televisão.
Assim que o mais novo livro de Eliane Ganem - já reconhecida e premiada na cena literária para o público juvenil -, “O caso do elefante dourado”, agrada pela agilidade narrativa e uma bem montada rede de enigmas a la Agatha Christie.
Aliás, a heroína do novo livro, a engraçada senhora Tide, personagem de um outro romance da autora, é uma espécie de miss Marple. A atrapalhada, mas muito sagaz, personagem conquista o leitor imediatamente por sua atitude corajosa e faceira. A história ambienta-se na cidade do Rio de Janeiro e intrunca uma série de roubos, seqüestros e assassinatos num misterioso caso que vai do furto de quadros famosos, guardados num dos maiores museus italianos, ao tráfico de cocaína no Rio de Janeiro.
A inclusão do cenário carioca do tráfico de drogas, apontando para a violência tanto policial quanto dos traficantes, com assassinatos de jovens e garotos, sumiços de vizinhos e etc, é bem interessante e aproxima as mentes juvenis ao cenário brasileiro urbano, sem deixar de incitar a fantasia e a curiosidade, já que há referências à arte renascentista, à ciência da criptologia e outras pequenas chaves enigmáticas.
A personagem de Tide, na verdade Judith, é sem dúvida bem construída e há algumas cenas hilárias, como ela surpreendida por um traficante, quando está sendo devolvida pendurada em um helicóptero sendo trocada pela falsificação de um quadro de Rubens. A cena é bem descrita e a surrealidade aparente nos remete às cenas televisivas corriqueiras no universo do crime. Os seus disfarces também soam cômicos, já que produzem uma espalhafatosa velhota que, sem pieguices e com muita graça, expande-se em doçura e agilidade mental.
A personagem é uma jovem de espírito, com um bom movimento na trama, e o corpo já afetado pelas marcas da idade, o que confere mais humor à trama. A sua relação de igualdade com os meninos do tráfico e a polícia explora um outro modelo feminino de heroína, não tão incomum, mas fugindo um pouco das personagens politicamente corretas ou romantizadas.
Bom ressaltar que mesmo tratando de temas delicados e violentos, a narrativa do pequeno romance alcança um certo grau de crítica e se resolve bem, de acordo com o que se espera, sem cair em didatismos morais fáceis ou gratuitos.
É certo que falta mais desenvolvimento psicológico das personagens – quase que lineares -, e mais ambigüidade literária, mas a escrita ágil acaba por manter-se num bom nível.
Todo o mistério do elefante dourado e do roubo de quadros termina por cativar também os adultos que gostam de enigmas, embora deixe-os certos de que possuem uma boa coleção de aventuras que jamais se apagarão de sua memória. Em todo caso, é preciso manter viva a fantasia e a curiosidade juvenis, ainda que no cenário triste das favelas, do tráfico, da corrupção policial, da vulnerabilidade desses meninos e meninas que vivem, eles próprios, o desaparecimento de corpos de forma tão violenta e triste. E isso a autora faz bem. É uma boa obra para os que curtem aventura e mistério e possuem sentido aguçado de humor.
O caso do elefante dourado/Eliane Ganem/Record/Galera Record/106 p/R$32,00.