domingo, 13 de novembro de 2011

As rasuras da cidade

A literatura pode “cantar” lugares belos, inventar paisagens e compor memórias universais. “Literaturas”, como a de Fábio Mandingo, podem “gritar” lugares da cidade onde quase nunca se chega. E podem “chorar” as mazelas dos homens dessas cidades invisíveis. As paisagens que ninguém quer ver.
É assim que “Salvador Negro Rancor” contradiz a Salvador alegre e harmoniosa feita para turista ver. Fábio Mandingo, jovem escritor baiano, nasceu em Santo Amaro e cresceu nas periferias de Salvador.
Com a sua escrita, ele decide fazer denúncias, revelar o canto calado e colocar a pele negra e pobre sob discussão. Foi, ironicamente, lançado longe de Salvador. Encontrei-o por acaso, numa livraria paulista, numa noite movimentada, autografando e fazendo leituras de seu livro. Leitura que emocionou-me e despertou-me a curiosidade, já que ele, no momento em que cheguei à livraria, lia um conto sobre o carnaval com uma linguagem ritmada de forma diferente e com uma ironia refinada, construída com as gírias e vocábulos que pensamos esconder belezas.
“Descoberto” pelo “Ciclo Contínuo de Literaturas” do projeto VAI, apoiado pela prefeitura de São Paulo, cidade de tantos nordestinos, Fábio leva a Bahia contemporânea sob outro olhar e vai expondo as fotografias que só em notícias de jornais aparecem.
Mas não é sem qualidade literária ou poesia. Seus contos, que são seis – “Cisco”, “Kaska”, “Pipoca”, “Paulista”, “Por acaso” e “Salvador negro rancor” - vão fazer uma curva de berimbau, cujo arco distribui choros, soluços e risadas em sons particulares que em qualquer parte se reconhece: capoeira, Bahia, Salvador, candomblé, negros.
O berimbau de Fábio, contudo, está longe das batucadas que enfeitam a Bahia. Esse é afinado de outro jeito. Os contos são construídos, na maioria, em terceira pessoa; o narrador é sempre uma personagem irônica e pessimista. A linguagem é a das ruas, cadente, com uma música própria. Essa musicalidade, inclusive, vezes se aproxima do universo Hip Hop que, diferentemente do samba, tem umas “quebras” abruptas que parecem soluçar no descompasso das desigualdades. Essa entrada do Hip Hop na linguagem também acolhe essa mescla de fala e música, um “slam” solto e livre. Com umas expressões e gírias deslocadas, o autor revela seu domínio da pena, sua destreza literária.
As imagens também são elaboradas de forma a estarem coladas na história contada, nas palavras e nos sons, saindo das meras descrições usuais, como no conto Pipoca, Cisco e Paulista. Com exceção de “Kaska” – conto em que o autor brinca com o título colocado entre parêntesis (“Ou um estudo sócio-etnográfico sobre os gringos carentes”) – os contos trazem diálogos que revelam as tensões sociais e raciais existentes na cidade.
O encontro com o outro é sempre discutido, seja esse outro a polícia, o gringo ou o rico. O crack é denunciado, como no conto “Cisco”, mas sem tornar marginal o usuário: esse um vítima das políticas públicas – ou da falta delas – na cidade. Em “Salvador Negro Rancor”, título que dá nome ao livro, o narrador é em primeira pessoa e, apesar do título, ali vê-se amor pela cidade e a cultura baiana. Mas o conto denuncia e, de maneira interessante, a capoeira é trazida para a estrutura do conto, alem de ser o instrumento, o cenário e o meio de de se contar os encontros tensos e constantes com o “outro”, nesse caso, o gringo.
Aliás, “gringos” são alvo constante de Fábio em seus contos. Razão até de análise. Mas é interessante ver como ele observa esses lugares de troca, seja ela pacífica ou violenta. Por alguns contos, há expressões em inglês e muito bem ficam elas no cenário da Salvador “para turista ver” que ninguém enxerga. O nosso português tupiniquim agora de outro jeito, com outras línguas diferentes daquela do momento do Modernismo, mas ainda nesse lugar antropofágico.
O livro de Fábio, prefaciado por Róbson Véio do coletivo Blackitude, merece um forte “Salve”. É um bom começo para esse escritor que, sem medo, faz o seu trajeto até outras cidades para cantar a nossa. Agora o baiano lança também aqui o seu livro. De amor, mais do que de rancor.

Salvador Negro Rancor – Secretaria de Cultura- Prefeitura de São Paulo – 79 p. $15

Lendo com o coração

Finkielkraut não é um desses críticos reacionários. Ao contrário, é um desses raros estudiosos que se entrega sem medo às letras, desejando ser transformado a fim de compreender a modernidade em perspectiva. Diante da escassez de “leitores complexos”, Alain é um ousado leitor que, contra o espírito da época encarnada pelos caprichos do imediatismo, do entretenimento forçado, ou dos ditames de uma socialização excessiva, inerente ao “progresso das mídias”, acredita na cumplicidade permanente da literatura.
Em sua opinião, o romance não se reduz à produção de ficção, mas é exigido pela inesgotabilidade dos seus discursos para o mundo. O seu encantamento diante do livro vem acompanhado de uma surpresa, talvez a mesma surpresa que o leitor encontra na citação sobre o Rei Salomão no prólogo sobre o título de sua obra: “O Rei Salomão suplicava ao Pai Eterno que lhe desse um coração inteligente. (…) Deus entretanto se cala.”
Sobre a escolha de sua lista para os ensaios, o autor diz que se baseou em sua emoção para a escolha. Assim, em “Um coração inteligente”, a biblioteca ideal do filósofo não é exaustiva. Com nove livros, ele se debruça sobre o espírito literário, interpretando os desequilíbrios entre a existência e a arte; entre a vida e o desejo, a justiça e o sofrimento. Seu caminho literário é "A Festa de Babette, de Karen Blixen, “Tudo passa”, de Vasily Grossman, “História de um alemão”, de Sebastian Haffner, “Lord Jim”, de Joseph Conrad, “Mancha”, de Philiph Roth, “Primeiro homem”, de Albert Camus, “Memórias do subterrâneo”, de Dostoiévski, “Washigton Square”, de Henry James e “A brincadeira”, de Milan Kundera. Todos estes textos promovendo discussão profunda e evidenciando verdades essenciais que podem complementar a faculdade de julgar, o grande mote dos ensaios de Alain Finkielkraut.
Alain vai de Kundera a Conrad para mostrar, com os livros que ele confia, que é capaz de decifrar a sua existência pelo viés literário. Intelectual íntegro, Finkielkraut tem levado a cabo uma sólida e fértil obra ensaística, oferecendo uma severa crítica da deriva experimentada pela noção, ilustrada e racional, de “cultura” na segunda metade do século XX, ao ser modificada pelo que tem sido chamado de “estudos culturais”.
Em seu livro “Um coração inteligente”, ele põe-se todo à serviço da literatura, sem artifícios, mas com um profundo conhecimento e, mais do que nada, uma profunda paixão pela vida, pela democracia e pela arte.
Finkielkraut interessa-se por examinar o trabalho do autor, ir profundamente ali e "em vez de proceder por item, interessa-se em contar uma história." Ele assume o papel de defender a Literatura como o caminho para a informação, tanto no âmbito pessoal quanto num escopo universal. Sem a literatura “as leis da vida são apenas uma lista de idéias conhecidas, mas sem jurisprudência”.
Essa literatura que valoriza Finkielkraut cura a arrogância. Ele oferece um remédio para figuras esquecidas, deixadas às margens da história. De fato, como dito no prólogo, “Um coração inteligente” é um conjunto de ensaios sobre romances e leitores. É a reivindicação da literatura como ciência social. E o autor ainda consegue ser modesto neste livro fascinante. São nove histórias e nove formas de “rever” o mundo. Com a literatura e com o coração “inteligente”.

Um coração inteligente/ Civilização Brasileira/238p./R$ 37,00.

Compre um minuto de dança!

Aparentemente, não tenho nada a ver com dança e quando me atrevo a escrever sobre isso é sempre partindo da idéia de que o texto é algo para além da palavra escrita, com signos verbais, não-verbais, movimentos, estados, experiências que promovem sentidos “narráveis”. É assim que não me furto a falar de dança, de cinema, de música, de arte. Mas é ainda mais como “consumidora” que esse texto me vem.
Em princípio, fui para ver um espetáculo de “dança contemporânea” na abertura do “Quarta que dança” – um merecido espaço para os profissionais da dança e para os que gostam de assistir a essa arte, mas não encontram muitas oportunidades na cidade - contudo, encontrei, digamos, outro “produto” lá. Encontrei uma proposta interativa que incluía a dança.
“Compre um minuto de dança”. Esse foi o apelo da dupla de dançarinos do grupo Núcleo B no espetáculo “Mercado Livre”. O trabalho é uma híbrida composição que envolve técnicas de dramaturgia, dança, performance, instalação e “talk show”. Há um figurino disponibilizado em uma arara no palco, um “menu” de músicas e dois dançarinos. O público que quiser “comprar” um minuto de dança, vai lá, escolhe o figurino, o bailarino, a música.
A proposta é interessante, sobretudo porque o público se vê envolvido em algo que parece distante dele: a composição de uma cena. Também pela crítica bem humorada do consumo - ou não consumo - da arte e da mercantilização do corpo.
Bel Sousa e Roberto Basílio se esforçam para fazer o público comprar um minuto de dança, como se estivessem numa loja oferecendo promoções relâmpagos ou numa feira vendendo seus produtos. “Qualquer coisa” pode pagar esse minutinho de dança, é só o público se disponibilizar a sair de suas poltronas para isso acontecer. O primeiro a ser escolhido é a música e, no “cardápio”, há Arnaldo Antunes, Beirut, Mozart, Metallica, Olodum, Sidney Magal, Rihana, Café Tacuba, Roberto Carlos, Beyonceé, Tahaikovsky, e muitos outros, de estilos os mais diversos possíveis, pop, brega, rock e clássico. E a “dança” oferecida sempre irônica, desconstruindo os lugares, brincando com os estilos.
O figurino também tem peças de variados estilos, mas exploraram pouco o vestuário masculino.
A brincadeira é divertida, confesso. Até eu me senti animada para ir lá “comprar” uma dança. A platéia se vê, pouco a pouco, cativada pelo lúdico da ação e interessada na crítica que se insinua à nossa confusa sociedade consumista – nem sempre consumindo arte.
O problema é que a proposta acaba falhando por não conseguir chamar a nossa atenção pela dança propriamente dita. Por ser muito rápido cada “quadro”, e parte do tempo ser utilizado na “interpretação” do texto-música, o que sobra de dança nisso aí é pouco e, além disso, há uma repetição dos mesmos movimentos em músicas diferentes, com os bailarinos arriscando muito pouco no desenvolvimento da criatividade em cena.
Apesar de poder ver que há técnica, é ainda frágil a abordagem da dança, não sendo ruim, apenas pouco explorado o potencial da dupla. E imagino que parte disso é justamente a junção de linguagens diferentes sem o tempo necessário para amadurecer esteticamente o trabalho.
No improviso teatral também acaba por faltar mais “texto”, mais exploração da própria idéia do mercado que eles levaram (gostei muito de quando eles falaram sobre comprar um livro e não se poder comprar uma dança, por exemplo, mas no geral se repete muito o apelo da compra da dança sem maiores referências ) embora haja domínio de palco por parte deles.
Quem se dispõe a fazer algo assim, sabe muito bem o quanto de dificuldades vai encontrar. É realmente um desafio equilibrar as diferentes técnicas necessárias para um espetáculo interativo e de multilinguagens artísticas. É preciso, portanto, trabalhar bastante, respeitar mais o tempo que se pede para amadurecer o trabalho, tanto esteticamente quanto tecnicamente.
Mas cada momento ali é único, assim que as demais apresentações que o grupo fará, merecem ser conferidas pelo público, tanto adulto quanto infantil. É divertido, é interessante. Aliás, aqueles que gostam de dança devem experimentar ir aos espetáculos do “Quarta que dança”. Custa apenas dois reais a entrada e é oferecida uma variedade de estilos de dança. O “Quarta que dança” é um projeto que sai de Salvador para mais duas cidades, Paulo Afonso e Juazeiro, contudo, espero que seja ampliado para outras cidades do interior do Estado, tão carente de projetos artísticos dessa qualidade e acessibilidade.
Na estréia deste ano, um espetáculo que tem menos dança, mas ainda assim oportuno para dar a cara do projeto: artistas e público convidados para festejar, prestigiar, descobrir a dança feita por gente de nosso Estado.O Núcleo B tem grande mérito na composição do trabalho de estréia e trouxe uma proposta de fato interessante. Espero vê-los em algum outro espetáculo, dançando mais, explorando mais suas técnicas, seus talentos, seu potencial. Vendendo a dança por essa cidade que, apesar de tanto movimento, andava precisando de bons espetáculos.

Mistérios, anjos e bagunças

O mundo, como está, é confuso para nós, que dirá para os pequenos. Mas é neles que temos de investir em se tratando de aguçar a fantasia, despertar o desejo de sonhar, estimular o prazer de ler.
Falamos de crise na leitura, cada vez mais sendo substituído o livro pelas mídias, pelo cinema. É tudo muito bem-vindo, quando com qualidade, estética interessante, histórias emocionantes e divertidas. A convivência de todas as formas de textos, do oral ao escrito, passando pelo iconográfico, é interessante e importante. Apenas não queremos que o livro saia de cena; há ainda nesse suporte o encanto milenar de virar páginas, descobrir o segredo das palavras, jogar com sentidos como se joga com brinquedos.
A literatura para os pequenos tem sido sempre algo especial, grandes escritores universais e brasileiros- de Esopo e La Fontaine a Chrales Dickens, dos irmãos Grimm a Maurice Sendak, de Julio Verne e seus livros de aventura a Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, de Marina Colasanti a Sérgio Vaz e Ferrez, passando por Clarice e sua galinha, Cidinha da Silva, Glaucia Lemos, Ruy Espinheira, Antonio Torres, Jorge Amado, enfim, de escritores locais aos mundiais, temos o lúdico, a fantasia, a poesia e a aventura presentes na nossa memória da infância, acrescentando-se aí os contos das avós em rodas de quintais.
Mas não é fácil escrever para eles, os pequenos. Cleise Mendes – dramaturga, escritora - e Paulo Rufino- que ainda não havia ilustrado para os pequenos- num gesto de carinho, juntaram-se para trazer “Gabriel e o anjo da bagunça”, lançado há pouco tempo pela Camurê publicações, num projeto do banco Capital, com a coordenação de conteúdo feita por Lena Lois.
A história de Gabriel, um menino que é surpreendido com uma bagunça tão bagunçada que ele mesmo se espanta, é um texto aparentemente simples, mas complexo em sua idéia: entre descobrir e pensar nos mistérios do cotidiano de uma criança, a personagem se embrenha por um mundo de fantasia, de aprendizado, de controle de medos infantis, de descobertas.
O texto apresenta diálogos e narração, além das ilustrações de Rufino. Como eu disse, é difícil escrever para crianças, decidir sobre adequação de linguagem, estrutura, tamanho, tipos de desenhos e técnicas. O livro é bonito, mas em certo momento fica difícil decidir para que idade ele é destinado, tem mais texto do que o comum para uma criança muito pequena, e ao mesmo tempo a escolha do vocabulário e a economia de metáforas são acertadas para os menores.
A opção pelas frases literais e uma certa objetividade por um lado é interessante em se pensando que não devemos subestimar o alcance das crianças, mas também acaba por, a depender de quem lê, deixar a história mais ligada ao real do que ‘a fantasia. Isso, claro, é equilibrado com as possibilidades fantásticas no quarto da criança.
Os diálogos começam a ficar mais interessantes no meio do livro, a autora parece soltar-se mais e ela própria passa a viver tudo com Gabriel. Da mesma forma, os desenhos começam muito na tradicional ilustração do texto; só em certos momentos deixando que a imagem seja o prolongamento do mesmo, seu complemento.
A técnica do artista é boa, ele se dedica ao trabalho com seriedade e cuidado. As ilustrações imitam a textura do material escolhido, o giz de cera, o lápis de cor sobre papel. É gostoso perceber a textura sugerida ali. E o papel, como o design gráfico do livro, foi feito cuidadosamente. Gostei mais das ilustrações que também “se soltaram naquele quarto”, naquela fantasia, como a dos fantasmas, a das cortinas voando, a do sol, do avião... a do sapo eu dispensaria.
Cleise Mendes respeita os pequenos, trata de deixar ali a sua mensagem: eles devem ser livres em sua fantasia e sentire-se seguros para resolver seus mistérios e medos. As crianças, como Gabriel, podem descobrir a si mesmos e sobre o mundo enquanto se deparam com o inesperado, com a surpresa, com as suas angústias. Vão aprendendo a ser responsáveis. E tudo isso com muita traquinagem e bagunça, amigos invisíveis, mistérios e bichos de estimação. A autora também insere, implicitamente, a relação dos adultos ali e os limites entre verdade e fantasia.
É um texto que traz um menino comum de uma família em “situação normal”. Gosto de que Gabriel seja uma criança que, sendo negra na história, também podia ou pode ser branca, mulata, misturada. Um projeto interessante nessa difícil – e bota difícil nisso – tarefa de escrever para crianças.

Por trás da burca, a força das mulheres

Ayaan Hirsi Ali transformou-se num símbolo da luta feminina contra a opressão nos países islâmicos. Em “Nômade”, ela volta a colocar a sua experiência num relato pessoal, uma espécie de romance-diário, no qual continua a contar a sua trajetória.
Agora, a autora tece a sua narrativa ao redor do eixo familiar. É contando sobre o seu pai, irmãs, primos, avós, mãe, família que ela classifica no livro como “problemática”, que ela aborda o Islamismo, um meio de vida mais do que uma crença.
Falando também de sexo, dinheiro e violência, Ayaan vai abordando a diferença entre o mundo muçulmano e o ocidental, destacando a oposição entre o sistema democrático e o teocrático, alvo de sua crítica e rancor.
“A burca deveria ser o ponto de partida para um debate mais amplo: a maneira de viver das pessoas em geral”. Afirma no livro. Ayaan Hirsi nasceu na Somália em 1969 e recebeu uma educação islâmica ortodoxa e radical, tendo sofrido mutilação vaginal, uma experiência traumática e dolorosa, conforme relatou em seu primeiro livro. Com apenas 22 anos, ela conseguiu fugir para a Holanda, escapando de um casamento arranjado por seu pai. Foi nesse país - que ela afirma adorar e diz ter sido o lugar em que mais foi feliz, que ela estudou, formou-se em Ciências Políticas e tornou-se membro do parlamento holandês.
A sua luta contra a opressão e a submissão feminina, assim como as críticas ferozes ao Islã, a levou a deputada em 2003 naquele país, antes de ser acusada de perder a sua residência holandesa e ver-se obrigada a ir viver nos Estados Unidos. Mas, antes disso, foi ameaçada de morte pelos fundamentalistas islâmicos e passou a ser acompanhada de guarda-costas depois de ter seu amigo, que dirigiu um filme sobre a sua vida, assassinado.
Ela costuma comparar os sistemas para mostrar os abusos e o fanatismo dos fundamentalistas islâmicos: “O nível de separação entre Igreja e estado é totalmente diferente. Para que isso também aconteça no Islã, depende apenas dos muçulmanos”. Em sua opinião, os grupos radicais do norte da África, ao colocarem a prática radical da religião acima de tudo, violam os direitos humanos.
As suas críticas, expressas no livro, alcançam também a benevolência dos países ocidentais com os imigrantes. Nesse sentido, destaca que é muito importante que a cultura de acolhida exija que as pessoas, além de aprenderem o idioma, aceitem os sistemas de valores. Em sua opinião, os países europeus que são muito “compreensivos” com as diferenças culturais e religiosas, acabam incentivando hábitos que prejudicam a mulher, que pode, por exemplo, morar na França ou na Inglaterra e continuar a usar a burca e a ser controlada por seus pais e maridos.
Com relação à violência de gênero, Ayaan destaca que não é só no Islã, mas em todos os âmbitos e sistemas. Ela destaca as diferenças entre europeus e orientais e, de forma aberta, elege como mais saudável a liberdade do ocidente.
O livro não traz nada de especial em se tratando de estilo; a linguagem é direta, quase jornalística, e a autora acaba sendo muito repetitiva em relação a alguns fatos e reflexões. Mas não se pode negar que é um relato corajoso e lúcido. A autora, que se denomina feminista, leva a luta feminina para além das relações homem e mulher e mostra como um sistema religioso misógino pode ser cruel.
Suas análise dos símbolos de sua cultura são instigantes porque ultrapassam oposições mínimas e se tornam complexas no contexto histórico: “A burca simboliza a tradição, é certo, mas seu significado é o do controle da sexualidade. Indica que a mulher que fique em casa, e revela o homem como incapaz de controlar seus instintos sexuais. Isso é o que inculcam os islâmicos radicais às pessoas.”
Hirsi Ali vive hoje nos Estados Unidos e criou uma Fundação em seu nome, através da qual defende os direitos das mulheres no ocidente diante do islamismo radical. Milita em várias frentes e afirma que “o multiculturalismo como se entende hoje é um fracasso”.

Nômade/ Cia das Letras/388p.

O “Xão” de palavras de Ondjaki

O jovem escritor angolano Ondjaki é um dos mais premiados de sua geração. A sua obra é mesclada: prosa e poesia seguem equilibrando-se na pena do escritor. Para além disso, vez por outra ele arrisca de fotógrafo, ator, cineasta.
Gosto de saber que entre todas as artes e linguagens, há a curiosidade exagerada pela palavra, seja a que dá forma às suas narrativas, seja a que suspende poesia do “xão”.
Ondjaki trocou cartas com o poeta Manoel de Barros. Entre eles, surpresas e palavras que caminham de uma pátria a outra, de uma alma a outra.
Em “Há prendisajens com o xão” a poesia das palavras tanto é oferecida em poemas como em textos curtos, narrativas condensadas, como a série das “estórias”. Nesses textos, dedicados a personagens da memória do escritor, há a interação da tradição oral com o lugar da palavra que tenta dar ao leitor, de certa forma, o lugar central, ainda que organizado pelas metáforas que revelam-escondem paradoxos, como o suspeito verso “um só olhar pode ser uma voz não dita”, do poema “Que sabes tu do Eco do silêncio?” dedicado a também poeta Paula Tavares.
Essa experiência tem estado presente na obra do escritor, que tem trazido ironias e desconstruções em grande parte de sua escrita, reclamando e refletindo o lugar político pós-colonial de sujeitos angolanos.
Ligando as partes do livro - “poemas” e “estórias”- uma invisível ponte erguida sobre o sentido das palavras. É nisso a maior beleza de muitos dos poemas, como “Penúltima vivência”: quero só/o silêncio da vela./o afogar-me/ na temperatura/ da cera./quero só/ o silêncio de volta:/infinituar-me/em poros que hajam/num chão de ser cera.
A linguagem também obedece seus princípios ali, nos poemas e nas “estórias”; as minúsculas e a pontuação experimental funcionam bem na dimensão visual e no ritmo das frases, dos versos.
Há também um compêndio colecionável: Na “Aterminação”, os convidados especiais aparecem brilhantemente: “Bichos convidados de A a Z, onde a ironia e as combinações tanto trazem o jogo especial da poesia, quanto a ludicidade também verificada em Manoel de Barros, ainda que com outros segredos. Uma das entradas que gosto é “grilo”: pastor de estrelas. embalador de noites. de tanto grilar seus sons, conhece cada curva de um silêncio. bichinho quase inencontrável de dia.
Tem também “Outros convidados ou descoisas de Z a A”, onde encontrei “quintal”: sítio onde cabe um grilo, um universo, um chão, uma algibeira de silêncios, uma estrela grilada ou todo um infinito inacabado.
O livro é assim: palavras, paisagem, homem, sentimento e coisas parecem ser feitas da mesma matéria: a poesia da própria palavra. Uma leitura que traz Manoel de Barros e as “descoisas” de outras paragens, talvez mais de Angola, mas também dos mares todos, e nem me surpreende que o meu inconsciente me traga o Saramago quando leio: “madeira”: sem ela não se fazem nascer jangadas.

O carro amarelo da infância

O livro “Três Infâncias”, de Mayrant Gallo, reúne três histórias sobre a infância, sobre o tempo e sobre as descobertas da vida em meio à aridez das dores, das perdas, das faltas.
Quando vi, na capa, a imagem de três balões, pensei no belo filme de Albert Lamorisse - um clássico sobre a infância- “O balão vermelho”.
No belo filme de Lamorisse, a paisagem parisiense pálida, do pós guerra, é invadida pelas cores dos balões que, como se fossem vivos, fazem a reclamação da infância, trazem o lirismo e a fantasia para a hostilidade da órfã infância européia.
Curiosamente, algo da crueldade que há naquele filme- por mais que seja lírico e belo- também pode ser visto nas histórias de Mayrant: há qualquer coisa de cruel em ser criança e ter de deixar de ser, mas há também maldades outras: um filho órfão de mãe vendo o seu pai ser humilhado ao cobrar de um engenheiro o dinheiro devido; a fome e a pobreza que fazem com que a bicicleta de um filho seja vendida para ter um pouco de comida; o vazio de uma cidade de risos infantis depois de um ataque aéreo; a terna despedida da infância que não vai voltar.
A novela “Moinhos”, que ganhou o prêmio Literatura para Todos, do MEC, em 2009, traz capítulos construídos engenhosamente; palavras pensadas e lapidadas para se chegar ao sentimento do narrador, o filho que um dia acompanhou seu pai pela vida, vendo-o sofrer a humilhação de ir cobrar o dinheiro que lhe é devido a um engenheiro que jamais paga a dívida.
Entre a penúria, os fiados no armazém, a entrada clandestina no trem, há a esperança curiosa de qualquer alívio com a presença da “loura”. É essa mulher, sensual, misteriosa, quiçá até doce, que trará de algum lugar do futuro a memória daquele filho que arrasta seu pai pela vida. E é ela também que dará a ilusão de que a desgraça se vai acabar. Mas ficará tudo ainda pior.
O conto é duro e terno. As frases permitem uma linha de ação contínua, que sai da memória e se torna presente no movimento desse narrador que recupera detalhes de si mesmo ao localizar seu pai: reduto de sua infância, prova absurda de sua própria dor. Não há filho sem pai. Há lapsos, quem sabe se do escritor, que intrigam, ou que fragilizam em certa medida, o precioso da história, como a frase “the day after”, que mais parece uma certa insistência do Mayrant Gallo do que do “autor-narrador” que viveu aquela história, um narrador longe disso e perto demais de “no entanto, fui com meu pai. Pela rua e pela vida, lentamente.”
Esses “Moinhos” emocionaram-me profundamente. Da mesma forma que me encantaram as “manchas” de “O ritual no Jardim” e o não poema-canção, o não conto do “romance” “Dias de Garoto”.
Em “O Ritual no Jardim” a meninice sai em burburinhos de histórias de quintal e de avô, no tempo da guerra, de meninas e de meninos que crescem e deixam em jardins as suas infâncias. São contos-capítulos curtos, pincelados de ludicidade, ternura e também segredos. As palavras e frases se movimentam secretamente naqueles espaços exíguos, naquelas manchas de tardes, e vão transformando em homens aqueles sonhos. O cenário de uma outra época não pareceria combinar com as narrativas curtas, contemporâneas, mas é nisso o segredo quase todo: escapolem das memórias de todas as infâncias do ontem ao hoje.
“Dias de Garoto” alcança-nos de outro tempo também, dá até uma certa raiva pensar que tudo nos diz respeito, que essas dores fazem do menino o homem que estraga a vida toda depois. Sonhos de infância.
As cidades, os cenários, são vários, são universais, São Paulo, Rio, um quintal ou um jardim, uma estação de trem de qualquer parte. E o quadrado vazio depois de uma explosão é a nossa história de intriga de gente muito grande: Guerras que ficaram sem sentido por aí.
Um livro com muito sobre esse tempo de brincadeiras e sobre os segredos das gentes crescidas. Belas histórias em narrativas densas.

Três Infâncias/Casarão do verbo/110p/R$24.

As palavras passarinhas

“Como as rochas, não gostava de máquinas, tinha horror das explosões. Encontrar atalhos preciosos no leito do rio não era motivo de alegrias passarinhas(...).” As palavras do conto “preciosidade” parece definir a premissa de Luciana Braga: seu devir poético, sua caneta deslizante desvia-se de explosões mecânicas ou programadas.
O seu primeiro livros de contos “Há cores e acordes” traz oito narrativas cujo eixo é a redescoberta. Prosa-poética que aposta na leveza e na inata força metamorfoseante da palavra, o conjunto da jovem autora, que já foi premiada com livros para crianças, traz a metáfora como a sua ferramenta principal para contar histórias.
Em sua forma particular de descortinar as suas personagens, o cotidiano se traduz em encontros subjetivos dos fatos com as palavras; são essas que parecem assumir o lugar das emoções, da surpresa, dos desencontros das personagens. Elas são algo vivo que roça suavemente o leitor, sem chocá-lo, sem explosões.
Em “Mudança”, um dos melhores contos do livro, a personagem nos leva para um lugar único, uma geografia outra, sendo a cidade um espaço de sentidos, guardador de passagens, sejam essas físicas ou vestígios de lembranças. Ali há encontros suaves com gatos e meninas, metáforas e segredos se misturando ao passado e ao presente de forma que todos os mistérios da morte sejam sutilmente entregues. A naturalidade desse fato vem da possibilidade de se ter na memória um cúmplice: a vida é caminho sem fim em sua beleza.
Maria e Osório compartilham suspeitas de amor em “Preciosidade”, com fugas dando-se, paralelamente, ao desejo de encontrarem-se na natureza antes de tudo, já que - como rio ou como terra- homem e mulher ali se traduzem. Amor, desejo, viuvez, maternidade: pactos de quem se deixa entregue ao sentimento.
Em “Fotografiló”, outro belo conto, Filomena sobrevive “fabricando pequenos milagres diários”. Sua existência pelos cantos da fria rodoviária, ou pelos sítios desertos e despudorados do abandono, emociona o leitor aproximando-o da vida crua de um não conto de fadas. E a poesia daquela prosa ajuda o desbravar desses lugares destinados aos solitários abandonados, faz-no ainda mais perto.
As tulipas amarelas do senhor Grendo ou a Rosa de algum revolucionário fazem parte do mesmo baú: são prendas escondidas na vida dos contos, descortinadas por poesia, beleza de arranjo que faz o leitor se ater a algo lá fundo; são qualquer sentimento estranho que guardávamos em repetidos cotidianos e diferentes desejos. Aquela recusa sempre ensaiada ou a entrega inusitada: a autora domina os segredos. “Butin de guerra”, “Dominique”, “À beira de amar”... seus contos são todos sopros de vida; de convite ao assentamento nesse tempo irrequieto e violento.
Luciana Lorens Braga fala de amor, de morte, de maternidade, velhice, memória, encontro, abandono, solidão. Para ela é tudo razão para a beleza do contar. A sua intimidade com as palavras é seu trunfo, embora se exceda nas imagens em alguns contos, sobrepondo-as desnecessariamente. Mas é com metáforas fortes, uma consciência de ritmo, de sonoridade, de “peso” que recombina as palavras todas, rearranjando-as de forma particular. Sua escrita é delicada e ao mesmo tempo forte. Seu tempo de histórias é qualquer um, ela não se preocupa com marcas, assume tranqüila um certo olhar: quer a sua escrita impregnada de alguma poesia à qual se relaciona.
Cachorros, gatos, meninas, ruas, rios, flores: Luciana não se limita. Ela se joga no vão lírico de sua prosa, deixa-se livre na aposta pela doçura, pela recusa à violência mesmo quando denuncia o feio que a vida guarda. As palavras são quase uma proposta de vida. Descobrir o cotidiano e reinventá-lo é fato; a escrita é o final do divã, o leito do rio, a última flor arrancada.
Há cores e acordes/Ofício das palavras. 159p.

A polêmica das adaptações literárias para os quadrinhos

O fenômeno é visível: uma infinidade de obras literárias foram adaptadas para os quadrinhos. As livrarias estão cheias de ofertas; os clássicos - da literatura brasileira à universal- chegam em velocidade impiedosa e igual “variação sobre o mesmo tema”, já que uma mesma obra pode ser vista em mais de uma adaptação, de diferentes editoras, como o “Memórias de um sargento de Milícias”, que deu origem a “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro” e a outras versões com o título da obra original .
Livros que para alguns custariam trabalho para ler, pela sua extensão, linguagem ou pela sua complexidade, estão disponíveis em poucas páginas ilustradas. Mas é isso algo ruim? Bom? É válido? É didático? Depende da intenção. Com o fomento do governo Federal,visando estimular crianças e jovens em idade escolar a lerem, muitos projetos de adaptações literárias foram encaminhados a editoras e comprados pelo governo.
As editoras, percebendo o filão, avançaram e tudo quanto é clássico anda sendo quadrinizado. Não sendo advogada do diabo e ainda assumindo-me leitora orgulhosa de quadrinhos tanto quanto da literatura, posso dizer tranqüilamente que as obras literárias quadrinizadas não substituem as originais. E mais ainda: algumas não conseguem nem mesmo manter “o caráter” da obra inspiradora, como é o caso de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, da editora Desiderata, que apesar do excelente trabalho gráfico dos artistas, que produziram bem, com desenhos magníficos e diagramação boa, não consegue manter a estrutura do romance e muito menos a personalidade de Policarpo.
As elipses e transições parecem funcionar em termos de ação, mas o contexto e a linguagem, que faziam do protagonista uma das personagens mais hilariantes e ao mesmo tempo comoventemente trágicas da nossa literatura, não conseguem se manter na obra citada. É uma excelente obra de HQ, mas não uma boa adaptação do clássico de Lima Barreto. Os recortes enfatizam o aspecto caricatural de Policarpo Quaresma, mas só.
Outras obras fazem o contrário: personagens secundárias acabam mais interessantes e alguns protagonistas se mostram mais atraentes, como na obra “inspirada” no livro “Memórias de um sargento de Mílicias”, de Manuel Antonio de Almeida, “Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”.
Esse caso é muito bom para mostrar que as dificuldades para se adaptar uma obra para HQ são imensas. Se a intenção é fazer equivalência e desejar que, por exemplo, o leitor não se sinta prejudicado se não ler o original, então é melhor que o texto seja o mais fiel possível, o que encontra barreiras em se tratando de outra linguagem.
Se a intenção é seduzir o leitor, através de outro meio, e levá-lo ao livro que inspirou o HQ, o melhor seria a criação livre, assumida e bem cuidada, que, se não se mantém fiel ao texto, pelo menos ao caráter desse sim.
Assim como as adaptações levadas ao cinema, essas que chegam aos quadrinhos sofrem dos mesmos perigos. As HQ são um gênero literário, com sua linguagem, sua estética, suas particularidades e, ao se transpôr para elas um clássico, há que se ter em mente o objetivo final. Os artistas dos quadrinhos ganham a oportunidade rara de mostrarem seus trabalhos, de serem publicados, de entrarem no mercado, mas ao fazê-lo sobre o trabalho literário pré-existente, muitas vezes acabam se perdendo, pois se o texto literário não for traduzido com qualidade, fica-se a sensação de que o artista não é bom.
Se as obras adaptadas forem trabalhadas como suporte ao livro original, nas escolas, o cuidado deve ser ainda maior. O professor tem de ser sensível para apontar as diferenças, perceber o lúdico e o especial dos quadrinhos tanto quanto da literatura, esteticamente falando. A HQ “Memórias póstumas de Brás Cubas”, da Desiderata, é uma dessas que tem sucesso raro: o texto é mantido com a maior fidelidade possível- guardando-se as devidas proporções, literalmente falando - e ainda assim os artistas criam com a linguagem dos quadrinhos, deixando claro que se trata de outro suporte. Apesar de ser um texto difícil, os autores não tentam facilitá-lo, mesmo que possa ser, em alguns trechos, chato para o leitor comum de HQ .
Se o leitor da adaptação é o leitor de HQ, ele buscará ali outras coisas, o traço, a dinâmica, a sutileza do detalhe, a ironia, o humor, a imagem que se complementa com o texto ou que nem necessita do texto. Mas o leitor de literatura que vai ao HQ buscar o caminho mais fácil para a obra deseja o mais possível saber do que se trata aquele livro tão falado e jamais lido. Assim, posso dizer que essas “traduções”, em sua grande maioria, não oferecem isso. São muitos os projetos que visam o lucro mais do que outra coisa, com algumas exceções, diga-se também.
O melhor é se entender o gênero HQ como tal, parar de se delirar achando que os jovens que não gostam de ler livros vão chegar à literatura através de uma obra adaptada aos quadrinhos. Uns poucos talvez sim, mas o melhor é ver a coisa tal qual é no nosso tempo: HQ é um gênero independente, como o cinema, possuindo bom e ruim material como há bom e ruim filme, bom e ruim romance. Se o jovem lê HQ, ele já é um leitor. Precisa ser estimulado para ser leitor de outros gêneros, chegando-se assim à literatura. Sou a favor dos livros, sempre, e como professora de literatura, luto por ela, mas as manifestações todas de nosso tempo são bem-vindas. O que precisa é se ter qualidade estética, textual, artística.
“Literatura” em quadrinhos me atrai pelos desenhos, mas eu continuo preferindo ler Machado de Assis e Lima Barreto, entre outros como Kafka, Marcel Proust, Dostoiévski, nos livros, no “meio” em que eles se fizeram grande, com o que eles deixaram em suas linguagens, suas propostas, suas metáforas, descrições, jogos, ironias, narradores: suas estéticas. Alguém por acaso iria lá querer ler Mafalda, Garfield, Homem Aranha, Cebolinha, O surfista Prateado , Sandman em páginas de um romance? Vamos ver os filmes, ler os quadrinhos e ler a literatura.
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/ Memórias póstumas de Brás Cubas/por João Batista Melado & Wellington Srbek: Desiderata editora.86 pág. 48,00 .
Coleção Grandes clássicos em Graphic Novel/Triste Fim de Policarpo Quaresma/por Edgar Vasques & Flávio Braga: Desiderata editora.70 p/42,00.
“Leonardinho: memórias do primeiro malandro brasileiro”. Por Walter Pax e Vicente Castro. Editora Saraiva.72 p. 35,00.

Ditadura e amor: um livro para o pai

Ditadura e amor extremo pelo pai é um tema que não parece muito fácil de resolver sem que a violência embrenhe-se no texto. Mas é em meio a uma doçura cativante que uma história sobre pai – uma quase biografia, se melhor quisermos abordar o livro – desenrola-se em “A ausência que seremos”.
Desde Agamenon, o pai é quem faz a guerra; é aquele contra o caos, a autoridade contra a desobediência. E se não o próprio Deus, é o que se incumbe de negociar com deuses. O pai é a lei, e a pátria o seu território.
Um livro sobre um pai poderia supor um projeto intelectual complexo ou agarrado a um dos muitos caminhos simbólicos do tema. Mas é o contrário. É uma relato simples e poético em seu caminho direto ao cotidiano familiar, no qual se pode enxergar as armadilhas políticas e, ao mesmo tempo, testemunhar a imensa paixão de um filho por seu pai.
A literatura, a filosofia e a mitologia acolhem o pai como a força primeira. Pela carga ideológica em torno dessa figura, na densa e estreita relação com o papel autoritário dos patriarcas – leia-se ditadores– latino-americanos, qualquer versão contrária não só chama a atenção como também é bem-vinda.
Nesse sentido, “A ausência que seremos”, de Héctor Abad, é um livro ímpar, pela qualidade narrativa e, sobretudo, porque o protagonista da história é o Doutor Héctor Abad, um progenitor diferente, como nos diz o autor-narrador-filho: “Cristão na religião, marxista na economia e liberal na política”.
O médico Héctor Abad, colombiano, era de fato um convencido da necessidade de um compromisso social da medicina com a pobreza devastadora em países como a Colômbia. Durante toda a vida lutou por paz, tolerância e justiça. Extremamente sensível, trancava-se em seu estúdio para ouvir Bach e Beethoven na tentativa de curar sua dor e sua raiva.
Ele foi ameaçado várias vezes, mas não calou a boca nem se exilou, denunciando nas rádios e nos seus escritos os autores da violência que rasgou seu país até 25 de agosto de 1987, quando dois homens esvaziaram suas armas no seu corpo, na porta do Sindicato dos Professores de Medellín. Ele tinha 65 anos, usava terno e gravata, e em seu bolso foi encontrado um soneto de Borges, "Epitáfio", talvez um apócrifo, cujo primeiro verso diz: "Já somos a ausência que seremos..."
Por conta dessa vida intensa, inscrita na memória e na alma do autor do livro, foi necessário mais de duas décadas para que ele pudesse enfrentar a escrita dessa perda. "Eu arranco de dentro estas memórias como se fizesse um parto, como se um tumor fosse removido", diz Abad.
Não há dúvida de que o tempo não só o ajudou a amadurecer a escrita como também a encontrar o tom adequado em uma tradição literária onde prevalecem o pai autoritário, o tirano e o patriarca. Enquanto a figura do pai de Kafka se impõe sobre seu trabalho e sobre sua existência, o narrador colombiano, ao contrário, escreve: “Amava meu pai sobre todas as coisas... Amava meu pai com um amor animal. Gostava de seu suor, e também da lembrança de seu cheiro... Gostava de sua voz, de suas mãos, de sua roupa impecável e da meticulosa limpeza de seu corpo”.
Por isso talvez a estranheza do relato venha da surpresa: Pode esse pai amoroso existir? O pai que ri mais do que os seus filhos, que chora quando está triste, que canta tango e escreve poemas? Esse pai que nem é o que sustenta a família, numa divisão de papéis completamente atípico? o pai que não está ausente?
Como se fosse pouco, o Doutor Abad educa os seus filhos com abraços, carinhos frequentes; protege com amor a família, em meio a uma sociedade atravessada pela violência familiar, política, institucional e histórica.
"A idéia mais insuportável da minha infância era imaginar que meu pai pudesse morrer e por isso eu tinha decidido pular no rio Medellín se ele viesse a morrer."
É preciso imaginar o escritor, adulto, esperando até que um dia não deseje mais saltar para o rio Medellín para poder contar a vida desse homem amado e trazer das gavetas a cura da memória ferida. Talvez como Nietzsche, que queria escrever "para superar a realidade."
O resultado é a história de Héctor Abad e ao mesmo tempo carta, testemunho, documento e biografia: a saga da família do escritor iluminando a história de décadas na Colômbia, desde um lugar de amor e de justiça.
A vida é uma ferida absurda, diz o tango que Dr. Abad adorava cantar. Mas a vida não tem cura. Artaud disse-o melhor.

Atrás da sinagoga

em: 2+ em 12-11-2011

O escritor norte-americano Philip Roth recebeu críticas ruins com seu romance anterior, mas “Nêmesis” eliminou qualquer dúvida possível sobre o seu declínio como autor. Roth se move na tradição norte-americana de grandes escritores usando um estilo jornalístico com recortes de poesia.
“Nêmesis” se passa na comunidade judaica de Newark, New Jersey. Durante o verão de 1944, eclode uma epidemia de poliomielite. Não é a primeira vez, mas o número de mortos cresce dramaticamente. Cantor Bucky, um jovem professor judeu que dirige uma escola de verão, enfrenta a morte de seus alunos com uma mistura de espanto e raiva. A vida de Cantor, um herói corroído por dúvidas éticas e morais, não tem sido fácil. Sua mãe morreu no parto, seu pai passou um tempo na cadeia, sua miopia o impediu de se alistar no exército para lutar. Ainda assim, os avós maternos tiveram o cuidado de dar todo o carinho que uma criança pode aspirar. Seu avô lhe ensinou disciplina, princípios morais fortes, auto-controle. Aos 23 anos, Cantor é um professor responsável e comprometido com o bem-estar dos seus alunos, quase um irmão a quem todos tem amor e respeito.
“Nêmesis” é dividido em três atos, um recurso comum em Philip Roth, que joga com o ideal clássico da catarse. O romance começa como uma história idílica ofuscada pelos primeiros casos de poliomielite. Mas a dor que invade o coração das famílias afetadas desfaz qualquer ilusão de solidariedade. Essa dor não sai com demonstrações de carinho ou com palavras de conforto na sinagoga.
“Poliomielite” é desconfiança, raiva, ressentimento. Poliomielite não se limita ao corpo doente. Seus estragos também são refletidos na podridão moral de uma sociedade que perde a confiança em Deus, na justiça ou misericórdia. Philip Roth faz da poliomielite uma metáfora, inspirado na peste de Camus, que alerta para os perigos do fascismo, um vírus que pode adormecer até ter a oportunidade de retornar. Roth vai ainda mais longe: o problema não é o fascismo. O problema é a condição humana. Nossas reivindicações morais são fantasias retóricas; algo pode se desmoronar quando se vê o medo. O pânico nos traz de volta à “pré-moral” do Estado.
Cantor terá de enfrentar um dilema moral que irá testar a sua integridade quando oferecem a ele um trabalho longe do foco da epidemia, pois terá de abandonar seus alunos. Ele será obrigado a escolher e determinar se vai viver de acordo com suas exigências morais ou sucumbir ao apelo de seu destino.
Philip Roth não fugiu do desafio de enfrentar mais uma vez a bondade presumida de Deus. Se Deus é bom e onipotente, por que ele permite a morte de inocentes? Cantor acredita que Deus age como uma velha estúpida e cruel.
“Nêmesis” é um romance extraordinário, onde se vê o talento de Roth como um contador de histórias e seu compromisso com os grandes temas da literatura: o ser humano, a morte, Deus, o mal, o irracional, a tensão entre o indivíduo e a comunidade, a crueldade da sociedade americana onde o “mal” parece ser uma presença permanente. Seria absurdo procurar esperança nestas páginas. Philip Roth não tinha a intenção de desenhar uma fábula moral. Simplesmente, ele mostra a tremenda vulnerabilidade dos seres humanos. No final, todos fracassam na mesma infelicidade.
Trad. Jorio Dauster/Cia das Letra