domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um passeio de bicicleta com David Byrne




É inquieto o fundador da banda Talking Heads. David Byrne faz de tudo e sempre explora até o limite de criatividade a matéria que lhe chega às mãos. O cara faz música, inventa ritmos, faz esculturas, intervenções, produz discos, faz instalações, filmes, fotografia. Há pouco tempo lançou “Diários de Bicicleta”.
O título, obviamente uma referência aos “Diários de motocicleta” do Che, é também o resumo de sua nova e antiga atividade: os diários (que passou a escrever em um blog) e a bicicleta (que faz parte da sua vida há trinta anos como seu único meio de transporte nas cidades onde chega e em Nova York onde mora). Mas a bicicleta de Byrne só vai por cidades ao invés de “senderos” outros, e sua atitude política é mais reflexiva do que revolucionária, embora haja ali uma atitude política que vai desde o sentido ecológico até as reflexões que implicam numa mudança de viver e interagir com o seu meio.
O título, como o livro, não pode também deixar de ser visto como uma referência ao estilo “on the road” pelo menos em um aspecto: o registro da passagem por um lugar e o que dessa passagem fica. Assim, como em muitas de suas canções, o que fica para quem lê é algo que, sem ser definitivo, é impossível de ser ignorado.
Sua mistura tantas vezes observadas nos discos, como música eletrônica com batidas de funk, estruturas minimalistas do clássico, ritmos percurssivos africanos misturados a algo do gospel ou até do country; o fluxo de consciência que muitas das suas composições guardam, oferecendo duas possibilidades de sentidos: a do sonho e a da vida disparatada, brincando com as palavras e com as imagens, são também ressonantes em seus diários.
Com prefácio de Tom Zé, o livro é um convite agradável às reflexões sobre o urbano e o humano. A obra traz pequenos ensaios e reflexões de temas surgidos dos passeios de bicicleta feitos por Byrne por bairros de várias cidades do mundo, como Buenos Aires, Nova York, Istambul, Berlim, San Francisco e outras assim cosmopolitas. Como a bicicleta, que depende do impulso humano para mover-se, Byrne mostra que a vida nas cidades depende de uma ativa combinação de forças que possam unir a criatividade, o espírito, a ação política, o humano de cada um aos espaços urbanos.
A bicicleta é extensão de seu corpo, por ela perpassa o ritmo de sua respiração; ela produz o vento que lhe bate na face ou dissemina o calor por todo o seu corpo, e para ele é a maneira de embrenhar-se vivo, de respiração alterada e corpo sensibilizado, por becos e lugares sórdidos, por bares e ruas, por vidas perdidas e achadas, lugares planejados de arquitetura arrojada e lugares sombrios e desprezados pela ordem urbana.
Tais passeios narrados no livro são como um filme possibilitado pela mobilidade oferecida por esse meio de transporte que, por sua vez, depende da vontade e da direção de quem maneja a câmera, isto é, a bicicleta. David deixa que suas análises revelem muito da cidade e dos caminhos que o levaram ali enquanto reflete sobre violência, memória, estereótipos, censura, e relações humanas dentro de um grande labirinto que é uma cidade.
Ele de fato elege a bicicleta como a forma eficiente de interagir, conhecer e refletir sobre os lugares da cidade e as pessoas que estão nela, pela velocidade apropriada (nem carro e nem trem permitem que o tempo seja controlado exclusivamente pela vontade do sujeito) e porque é o único meio que permite uma penetração total em qualquer lugar de uma cidade.
É o anonimato do ciclista outra característica interessante. Não há necessidade de que esse observador se materialize em persona, apenas que, tal e qual uma bicicleta, anonimamente desperte a vontade de seguir adentrando-se na cidade para sentir-se parte dela e conhecê-la profundamente; sensivelmente descobrir cores, formas, cheiros, música, gente que nem se pensou existir.
Diários de bicicleta/ David Byrne/Amarilys/333 p/49 reais

Publicado no A tarde 27/02/2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O Ulisses dos quadrinhos






O romance em quadrinhos “Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo” está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras. O autor, o americano Chris Ware, tornou-se uma das maiores referências na história dos quadrinhos. A crítica americana o classifica como o James Joyce do gênero e “Jimmy Corrigan”, ganhador de vários prêmios literários importantes, o Ulisses das narrativas gráficas.
Particularmente, sou leitora moderada de HQs, mas encontrei, na obra, não apenas uma originalidade na arte do desenho e diagramação, mas um refinado e denso diálogo entre texto e imagem. Não há nada no livro que possa ser visto como uma facilitação ao leitor. Ao mesmo tempo se percebe que o desejo é de comunicar os sentimentos presentes na história, que gira em torno da vida de Jimmy, um homem de meia-idade perdido entre a infância e a vida adulta, atormentado pela presença da mãe, à qual telefona todos os dias, numa dependência psicológica bem ao estilo da tradição freudiana.
Para o leitor habitual de quadrinhos a experiência com “Jimmy Corrigan” não se assemelha a nada antes visto. A narrativa é complexa na estrutura e na história. Não há ações ou mesmo sucessão de fatos; a história é fragmentada tanto no tempo (passado e presente se confundem em “três gerações” de Jimmy: ele próprio, seu pai e seu avô) quanto na realidade (a fantasia se mescla à vida da personagem sem que haja qualquer fronteira e vemos os sonhos de Jimmy como extensão de seu cotidiano).
Os desenhos configuram um universo simples nas linhas e cores, mas um emaranhado nas seqüências. O fluxo de consciência, já conhecida técnica literária moderna, é levado ao grau máximo de refinamento nos desenhos. A apresentação do livro é original e na capa se tem um resumo da proposta estética do autor, que utiliza técnicas da publicidade e do design gráfico americano, imprimindo uma voz autoral na exploração dos detalhes.
O livro traz ainda descrições técnicas, receitas e moldes de brinquedos “inventados”, que aparecem repentinamente na história, além de explicações do que seria aquele “apólogo”. O título, que faz referência a um garoto, não é mais do que outra das ironias de Ware, pois o personagem Jimmy é um adulto. A intenção é mostrar que nos adultos habita a criança e que as distorções observadas na história de um país e de um sujeito têm suas bases delineadas numa “infância”.
O trabalho temporal é também apurado, tanto na representação histórica do cenário, a velha Chicago, quanto nos hábitos e nos detalhes do cotidiano, pois Jimmy é fascinado pela história do seu avô e, à medida em que se manisfesta a sua insegurança de adulto, que não consegue se relacionar com as mulheres ou ter amigos, vamos acompanhando o passado de seu avô, num movimento circular de experiências sentimentais que comunicam o que não sabemos de Jimmy.
Os quadrinhos não são regulares nos tamanhos e nem nas sequências lógicas. Os ângulos escolhidos dependem muito mais da carga sentimental envolvida do que do sentido da história. Tecnicamente, o resultado é muito bem sucedido. Muitas vezes, não há como não parar diante de um único quadro cujo detalhe absorve toda a carga semântica do sentimento das personagens. E com poesia. Os sonhos também são outro canal de diálogo, e há temas que se repetem neles, como o primeiro dente que a criança perde, experiência densa de sentido, tanto na história de Jimmy quanto na do avô, cuja representação imagética fascina pelos sentimentos distintos que cada uma das sequências é capaz de despertar.
A história traz cenas violentas e sentimentos obscuros potencializados num detalhe ou numa cor, sem uma seqüência narrativa autoexplicativa, com passagens de morte, nascimento, busca e solidão. Também não se ignora que por trás da história de Jimmy, autobiográfica em certos pontos, há uma nítida referência ao sentimento de decepção diante dos novos rumos da sociedade norteamericana, que perde o ideal romântico da liberdade e de uma vida perfeita, com desenvolvimento urbano, econômico e satisfação do sujeito, para cair num apelo político e num consumo desenfreado.
Além do desencanto, há um olhar profundamente irônico sobre o sujeito contemporâneo que transita entre a vida cotidiana e a fantasia de heróis superpoderosos. Assim, não é de se espantar que Jimmy fique intrigado quando o superman, seu herói da infância, suicida-se, atirando-se do alto do edifício onde Jimmy trabalha, depois de lhe deixar um pequeno bilhete.
Ware compartilha com o leitor uma seqüência de experiências, tanto visuais quanto históricas, numa poética textual e gráfica elaborada, levando o leitor a deparar-se com um sujeito fragmentado, solitário, frustrado, mas ainda em busca de respostas.
Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo/Chris Ware/ Cia das Letras/388 p/R$ 49

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Um céu de origamis em paisagem carioca




O gênero policial mais cedo ou mais tarde nos chega. Comigo foi ainda na adolescência, com Agatha Christie e seu Hercules Poirot e Arthur Conan Doyle com o detetive Sherlock Holmes. Um pouco mais tarde, veio a descoberta de Poe e Dupin ficaria para sempre, a tal ponto que, a cada par de anos, volto à rua Morgue. Há outras dessas personagens peculiares da linha detetivesca, certamente, como o Mandrake do Fonseca, mas, no Brasil, o gênero ainda possui poucos autores dedicando-se a criar investigadores inesquecíveis.
Há tentativas, de certo modo até bem sucedidas, de se explorar mais o gênero na literatura brasileira contemporânea. O autor de “Céu de Origamis”, Luiz Alfredo Garcia-Roza, vem se dedicando a isso, e seu delegado Espinosa é seu parceiro, conseguindo uma consistente produção de romance de mistério.
O autor, que já publicou nove livros do gênero, demonstra intimidade com a técnica narrativa de enigma e consegue segurar a curiosidade do leitor, dando-lhe algumas surpresas. A começar pela substituição de um crime por um desaparecimento, no desenrolar do mote inicial, já que, obviamente, romance policial que se preze deixa por aí um corpo. Assim é que um dentista, numa certa manhã, após fazer tudo igual ao que sempre fez, desaparece e com isso temos o delegado Espinosa a postos. Com uma personagem femme fatale rondando-o, claro.
A narrativa traz mudanças, leves, na figura de Espinosa (o delegado-detetive que aparece nos demais romances do autor), que agora ganha mais espaço de intimidade familiar, como a volta do filho que foi criado nos Estados Unidos e que, além de dar mais chance ao Espinosa de se mosrar uma personagem mais densa (notam-se conflitos ideológicos entre os dois que passam a dividir a casa pela primeira vez), vai deixar a trama mais inquietante, pois chega cheio de mistérios, nunca sabemos porque veio, e se envolve com uma das personagens ligadas ao dentista desaparecido.
O delegado assume o caso, primeiramente, como amador, já que está afastado da delegacia por estar se recuperando do problema de saúde enfrentado no romance anterior, e depois como profissional, voltando a sua delegacia, e essa mistura faz bem ao romance, porque explora-se mais a análise dos mistérios. O romance é até mais interessante na primeira parte.
Apesar de se notar a habilidade narrativa de Garcia-Roza, o desenvolvimento das personagens é superficial e os clichês aparecem muitas vezes, ainda que se vislumbre um potencial psicológico por ali. Também há alguns erros na trama, estranhos para um autor experiente, como o fato de o filho do delegado descobrir que o restaurante no qual almoçou com a jovem envolvida no “crime” (com quem ele acaba desenvolvendo uma relação) não funciona como restaurante; o edifício que ela diz morar ninguém com seu nome vive; a jovem troca de nome e isso toma um tempo grande da trama, mas, esses fatos jamais voltam à tona; perdem-se por ali, revelando-se um deslize de continuidade.
O romance, se lido dentro do conjunto da obra do autor, tem bastante qualidades. Os aspirais, as pistas e as confusões agarram e mantêm o leitor, e o delegado, menos impulsivo, menos de ação e mais observador e analítico, charmosamente, segura o crime e nos deixa sob um céu de origamis em uma Copacabana bem carioca.

Céu de origamis/Luiz Alfredo Garcia-Roza/Companhia das Letras/262p./39 reais
Publicado no Jornal A tarde, caderno 2+, 06/02/2010