sábado, 20 de março de 2010

O amor em uma casa com gatos, solidão e desespero


“Quando acordei, não sabia do mundo senão a derrota. Doía-me o corpo morno sob a roupa amassada, mole e morna. Caminhava em passos desencontrados pelo corredor. Era dia, mas estava perdido no tempo. Não sabia as horas, porque estava num instante sem horas, num tempo sem horas, entre as horas.”

Eu passei um tempo ruminando sobre casas, suspensa em delírio fomentado por pedaços de obras de Borges, Cortázar, Lúcio Cardoso, Unamuno e Rulfo. Os primeiros me chegaram com suas casas, distintas entre elas, carregadas de mistério e de tanta vida; os dois últimos, por diferentes razões: o narrador e o que há de vida dentro da morte.
A obra que me remeteu aos escritores citados foi lançada, no Brasil, há pouco tempo: “Uma casa na escuridão”, de José Luís Peixoto, jovem escritor português, premiado e defendido por grandes nomes como a revelação da literatura portuguesa contemporânea.
É o seu segundo romance, mas o primeiro que eu leio, e a leitura tomou-me por longo tempo. Em “Uma casa”, Peixoto logra dividir-nos – num ambiente ao mesmo tempo onírico e real na violência dos sentimentos escritos – entre a credulidade diante de um amor impossível e o estarrecimento frente ao obscuro e mórbido mundo apresentado, retirado das entranhas das personagens que habitam a casa e das ameaças que do mundo externo se lançam.
O mundo, bestial e cinzento, é criado pelo próprio narrador, quem assume a missão de escrever entre os preambulosos vãos de uma casa. Nessa habitação, onde vive com a mãe velhinha e silenciosa, uma escrava (num anacronismo interessante) e a multidão de gatos da mãe, o autor-narrador-personagem está lutando para viver um amor impossível, apesar de sua dedicação extrema: a mulher pela qual se apaixonou é uma invenção sua; ela só existe em sua imaginação, ou melhor, existe dentro de si e o que sente é porque ela está com ele. Nada é mais real do que o sentir.
Nessa casa de suspensos prólogos, uma vez por ano a escuridão se instaura. Os gatos, entre o silêncio dos moradores, ocupam e dominam os espaços e os próprios humanos que sobrevivem ao “tempo da casa”, este formulado sob digressões e eventos que não se separam, pois não há barreira entre passado e presente.
À medida que as sombras vão tomando a casa, o narrador tenta escapar da violência da escuridão e a mulher ‘inventada”, a heroína do romance que está tentando terminar de escrever, torna-se seu elo de ligação, contraditoriamente, com a realidade à qual, esperançosamente, busca agarrar-se. Essa luta íntima é surpreendida, finalmente, pelos invasores que ali chegam. E a casa se transforma num ambiente tenebroso, com seres obscuros, quase monstruosos, que o vão testar até seu limite.
Uma nuvem de violência trazida pelos invasores assalta a casa e seus moradores, e o narrador se vê cuidando dos filhos daqueles seres surreais, mutilado em sua capacidade de escrever, sonhar e até amar, e porque guarda, de verdade, amor pelos pupilos é que logra salvar-se, porque os meninos também lhe têm amor.
O romance é uma fábula onírica, com um linguagem poética de alto nível, uma liberdade de escrita que mescla a construção das imagens com o experimento sonoro e estrutural. Há mudanças de estilo no decorrer da narrativa que nos revela a força da arte poética de José Luís Peixoto e o controle absoluto da linguagem, além de espantar qualquer possibilidade de tédio diante do subjetivo.
Morte, memória, fantasia e dor estão ali, indissociáveis da experiência de estar vivo. Entre as sombras, a literatura, a fé e o amor, pouco a pouco a fronteira entre a fantasia e a realidade se vai desvanecendo. “Uma casa na escuridão” é um romance insólito, inquietante e absurdamente do nosso tempo.

“Uma casa na escuridão”/ José Luís Peixoto/Record/304 p/40 reais

Publicado no jornal A tarde 20/03/2010

3 comentários:

  1. Professora, quando vamos ver você? os seus ex-alunos sentem saudades. Lemos suas resenhas sempre! Beijocas, minha pró linda!

    Sheila Ane

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  2. O amor quando trancado e enclausurado, vira amargura. Quando liberado e solto, pode voar e voar. Mas sera que sempre encontra um destino? Prof não tenho seu email, me contate: mirela015@gmail.com beijoo

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  3. Ane, também adoraria reencontrá-los! vamos forçar as coisas, mande uma proposta para o meu e-mail :-) um cinema, uma peça, um show... um acarajé.


    Mi: Não vá deixar de me escrever contando tudo de Curitiba e dos caminhos escolhidos. Vai ter de passar por aqui e compartilhar palavras. Vou te mandar meu e-mail. Beijinhos.

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