sábado, 12 de junho de 2010

Drummond: livro, pedra e poesia



Publicado no Jornal A tarde 12/06/2010

O poeta faz a sua mala/põe camisas punhos loções/um exemplar da “imitação”/e parte para outros rumos.

Como “Fuga”, poema de Carlos Drummond de Andrade, “Alguma poesia - o livro em seu tempo” é aquela pedra da qual somos herdeiros: se no meio do caminho tinha (uma pedra), no nosso caminho tem (Drummond). Não adianta correr do Modernismo. Há ainda potencialidade em Drummond, na “pedra”, na “fuga”, e em “Alguma poesia”.
O poeta Eucanaã Ferraz é organizador desse livro especial. Em um belo tomo, reuniu fotos, cartas, manuscritos, datiloscritos e um fac-símile da primeira edição do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade: “Alguma poesia”. E, no tomo fac-similado, observamos as alterações que o poeta fez à tinta e que foram incorporadas às edições posteriores. O livro é cheio de surpresas como essa e, como o próprio organizador chama a atenção, é uma jóia para aqueles que são estudiosos da obra do grande poeta modernista e um presente para os que gostam de poesia, de livros, de história, de fotos, de memória, de papel.
O volume foi organizado em três partes: a primeira é uma apresentação, escrita pelo próprio Eucanaã, que traz a história do livro “Alguma poesia” de maneira interessante: localiza Drummond na cena modernista mineira partindo, principalmente, do diálogo deste com Mário de Andrade. As informações são dadas a partir das cartas de Mário a Drummond e a Bandeira, e as respostas de Drummond, assim como informações de livros, artigos, acontecimentos. Tudo devidamente documentado e explicado “textualmente” em notas de rodapé. O que ali interessa é a “biografia” daquele livro, então, o leitor pode ver como nasceu alguns dos poemas, quais foram incompreendidos, massacrados, adorados, reescritos, aceitos. O leitor acompanha mesmo o nascimento de uma obra desde a sua idealização até a sua edição. E ainda recupera a discussão dos modernistas, a força de Rio e São Paulo em relação aos demais grupos modernistas, a opinião de Mário sobre os poemas, alguns dizendo gostar e outros dizendo achar ridículos, ingênuos, mas reconhecendo o valor e pedindo ao jovem poeta que “por favor” publique a obra ainda que tenha de pagar do próprio bolso pela publicação.
A segunda parte é o fac-símile. Que gostosura: podemos ler os poemas em sua grafia original, gozar do amarelo das folhas, testemunhar as interferências e correções feitas por Drummond, saber como foi a diagramação da primeira edição, “forjar” uma fuga ao contrário: é no tempo do poeta que entramos, vindos do pós- moderno, procurando o lugar do “stop/a vida parou/ou foi o automóvel?”.
Na última parte se tem a fortuna crítica da obra, e as cartas de agradecimento enviadas por críticos, amigos, escritores, conhecidos e anônimos que receberam o livro. As resenhas e artigos vão dar notícias das críticas negativas e elogiosas ao livro.
Assim como “Alguma poesia” reúne alguns dos poemas mais significativos de Carlos Drummond de Andrade, “Alguma poesia- o livro em seu tempo” traz algumas das mais importantes relações: a do poeta com a sua obra, e com o seu tempo. Na feitura do livro, acompanhando cada um dos aspectos - do intelecto-artístico ao filológico -, tem-se a magnífica “ciência” do livro, encantando e desencantando a palavra do poeta. Uma bela homenagem ao poeta, ao livro e à poesia, fruto da união do grupo Moreira Salles, Casa de Rui Barbosa e da família de Drummond, sob o olhar de outro poeta. Depois de “possuir” esse livro, não nos contemos: - Vem, Carlos, ser gauche conosco.

“Elas” sem pseudônimos, mas com blogs, ‘cartas’ e twitter: escritoras da Bahia contemporânea


Imagem da artista visual Mari Fiorelli - www.ociumeilustrado.blogspot.com


Publicado em A tarde 12/06/2010

Eu não acho, definitivamente, que a Literatura deva ser classificada, mas, com o mínimo de olhar crítico, é impossível não se aperceber da diferença que houve no tratamento e no acesso de mulheres, e outras minorias, às publicações literárias.
A arte literária é complexa como produto, envolve criação, publicação, circulação e recepção. Enquanto as mulheres, até o século XIX, lançavam mão de tudo quanto fosse estratégia para chegar aos leitores, uso de pseudônimos masculinos, casamentos convenientes com escritores ou com Jesus (as que souberam bem articular desde a Igreja, como Sor Juana e Amélia Rodrigues ) e outros trágicos e cômicos artifícios, as de hoje escrevem em blogs, twitters, sites; postam, mandam “cartas” para o público e experimentam, inclusive, processos ‘novos’ de criação, frutos dos avanços da tecnologia: as intertextualidades, as linguagens híbridas, a sobreposição de texturas literárias.
As cartas, como as da coleção “Cartas baianas”, da editora P55, são mandadas com carinho e com sucesso: a edição, despretensiosa, é cuidada dentro de um projeto gráfico simples e, ao mesmo tempo, atraente, com o visual jovem que nos dá vontade de mexer de forma fetichista quase. E não custa muito, ainda que o preço corresponda ao tamanho e à bem bolada – não sei se consciente- forma de pegar o público: alguns dos textos chegam ao final e o leitor tem vontade de mais, certamente dispostos a consumir o segundo tomo se houve/r/sse.
As remetentes das “Cartas” são diversas em seus estilos e linguagens: Kátia Borges, Allex Leilla, Karina Rabinovitz, Adelice Souza, Renata Belmonte, para citar algumas.
A poesia das “Ks”, Kátia e Karina, são distintas: Rabinovitz trabalha mais com composições visuais,embora haja também poesias cuja musicalidade é explorada, não só pelos jogos com as palavras, mas com o próprio ritmo e recursos sensoriais. Muitos de seus versos são imagens, arranjos gráficos, poemas-coisas, os quais invadem também a cidade como instalações poéticas, numa agradável e possível mistura de artes visuais com texto poético. Basta pensar nas caixinhas com poesia dos pontos de ônibus, as pinturas de versos nos muros da cidade, o lambe-lambe poesia, os balões que escondem versos e outras poéticas instalações. Chama-me a atenção a sua coragem em explorar a poesia dessa maneira, e a visível ausência de hierarquia entre as variadas formas de expressão artística.
Kátia Borges mergulha na palavra e a explora como parte de uma tessitura firmemente marcada pelo sentimento que vem da experiência, mesmo que seja da experiência da memória. Em sua poesia, a memória de uma geração – que não corresponde temporariamente ao seu tempo de produção, mas que sem dúvidas foram suas referências - vai surgindo não apenas pelas pistas literárias e culturais que faz emergir, de John Fante a Janis Joplin, mas também pelo acercamento a uma poesia que revela o lugar do poeta e, com isso, seu envolvimento com o seu tempo, com a própria literatura e o desvendamento do sujeito que faz da poesia a sua morada.
As “As” da coleção, Allex Leilla e Adelice Souza, trazem temas fortes em suas produções e ambas trabalham bastante com o desejo; são diferentes, ainda que com semelhanças que as trazem ao lugar de onde escrevem: o presente. Allex Leilla ‘compõe ‘ ficção com poesia. A escrita madura, bem fincada na liberdade que se dá em termos de experimentos de linguagem e exploração minuciosa do corpo como parte dos textos, numa muito interessante relação de carne-palavra, faz mergulhos pelo submerso do sujeito, da palavra, mas não foge dos encontros com suas influências literárias, seus gostos musicais e poéticos. O seu texto traz referências, citações e recuperações de versos entram na sua obra num bem balanceado diálogo e vai além: acaba fazendo parte de seu texto de maneira natural, sem, contudo, perderem o sentido primeiro.
Adelice brinca seriamente com o “teatro das palavras” explora a dramaturgia latente nas histórias de vida das personagens; como as demais, “intertextualiza” em sua escrita de forma peculiar e experimenta entrar na intimidade das personagens sem pudores, revelando-as e desmacarando as suas dores e o seu riso num texto forte.
Renata Belmonte, com a sua Sta. B., explora a relação autor-personagem, joga com essa relação e vai percorrer o caminho que as personagens percorrem. Não carrega pesos e a escrita vai solta, pontuando pelo caminho as observações da vida, a intimidade com o presente dentro e fora da obra, e a ‘farsa’ que limita realidade e ficção.
Dos blogs há outras, além das que foram publicadas pela coleção “Cartas baianas’, como Eliana Mara Chiossi, que reuniu as suas ‘postagens-escritos’ no livro “Fábulas delicadas”, da editora Escrituras. Eliana, entre todas as escritoras dessa geração, é a que mais assume uma feminilidade como parte de sua obra, explorando, nos textos, esses lugares do feminino na contemporaneidade, externamente falando, e também na intimidade de certas experiências como a maternidade, a fantasia, o desejo, o papel de filha, de mãe; recupera metonímias e metáforas levadas por palavras que muitas escritoras rejeitam pelo estigmatizado que ficou o vocabulário dito “feminino”: jardins, flores, cores, deus, divagações. A sua escrita, nesse primeiro livro que saiu de seu blog, promete percurso e a escritora se mostra com coragem.
Ana Paula Fanon, poeta, produtora cultural, fotógrafa e jornalista, que mantém o blog literatura subversiva, não privilegia a sua poesia frente ao texto jornalístico: em seu blog há tudo em igual destaque. É uma blogueira-poeta que usa a paixão e a liberdade para variar nos temas e formas de sua poesia.
Elas, as baianas, sem “nicknames”, pudores, ou restrições, vão traçando um percurso abrangente de temas e experimentações, usando ao seu favor os novos meios de divulgação, mas não se limitando a isso; utilizam os próprios meios para experimentar na linguagem, revelar outras facetas, trocar experiência, expor poesia como instalação, publicar o que gostam e lêem. E as que mandam ‘cartas’, mandam-nas seus nomes, dando ao momento a certeza de que elas assinam. Os nomes e, sobretudo, as obras.