segunda-feira, 30 de novembro de 2009
sábado, 28 de novembro de 2009
Tulipas que brotam na guerra
"O oficial chamado Gyurka então olhou para minha mãe, balançou a cabeça, depois virou para mim e disse está bem, iriam embora, mas apenas porque ele via que nós gostávamos de flores, e quem gosta de flores não pode ser má pessoa.(...) O major também saiu, e minha mãe, então, quis bater a porta atrás dele, mas o major de repente se voltou na soleira, pôs o pé na porta para que minha mãe não pudesse fechá-la e disse, gentil, calmo, que ela ainda iria se arrepender daquilo."
Seria possível um relato mais verdadeiro de uma situação de violência e opressão do que o de um garoto de 11 anos? Não parece, depois de lermos “O rei branco”, segundo romance do escritor György Dragomán, nascido na Transilvânia. O narrador é Dzsáta, filho de um opositor ao regime político comunista, em um país do leste europeu, levado, num dia de domingo, para um campo de trabalhos forçados. E todos os dias viram domingos tristes enquanto Dzsáta aguarda, com esperança e uma fé cega, o retorno de seu pai. O romance possui traços autobiográficos, já que György e sua família deixaram o país em condições políticas igualmente tensas, embora o autor deixe claro que não passou pelas mesmas experiências que Dzsáta.
Sob o regime totalitário, os adultos são “monstros” corrompidos pelo sistema opressor e parecem querer a destruição de seus filhos, crianças sem futuro num país sem liberdade. Os professores, os adultos e os velhos vão assumindo a cara do “pai”, o Regime, e parecem reproduzir com prazer sádico as atrocidades sobre a infância que os sacode com sua indefensibilidade. O romance é construído com capítulos curtos, num estilo solto e às vezes desordenado, acompanhando a fluidez do pensamento infantil do narrador. Como se fossem para serem guardadas como memórias, as histórias vão girando em torno de pequenos detalhes, objetos que sobrevivem ao fim dos episódios como lembranças a serem colecionadas em gavetas. Bolas de futebol, robôs de plástico, tulipas, cadernos: rastros de meninos passando pela vida.
Terno (por conta de um narrador sensível) apesar de tanta dureza, o relato nos leva a testemunhar, em meio a um ambiente obscuro com a presença materializada do medo, o despertar da adolescência de Dzsáta. Somos cúmplices da sua primeira paixão, da descoberta do corpo feminino num rolo de filme escondido num depósito de cinema, das suas aventuras pelos campos vigiados, do roubo das tulipas, de suas mentiras para escapar dos castigos dos professores, de sua desesperada busca pelo pai e cumplicidade com a mãe. Somos também obrigados a enxergar o quão cruéis podem ser homens e meninos quando uma ditadura se instaura consumindo a liberdade que alimenta o espírito, a arte que alimenta os sonhos, a comida que alimenta o corpo.
Para chegar às questões políticas, o autor deixa livre a voz do narrador, sem tentativas de censura ou proteção à infância, mas acaba caindo em obviedades dicotômicas, apesar de explicitar a violência – física e psicológica – do sistema político repressor (No romance, todas as personagens comunistas são cruéis. Fácil demais para um escritor talentoso). O pai de Dzsáta desapareceu, seu avô, homem importante do regime comunista, consome-se de culpa por não falar com o filho traidor do regime, ignorando os apelos da nora para ajudar a encontrá-lo e trazê-lo de volta. Na escola, o garoto amarga a sua condição ambígua: filho de um “desertor” e neto de um importante nome daquele regime. O intervalo de espera pelo pai é preenchido pela descoberta das verdades do mundo dos adultos. O menino está crescendo e, enquanto isso, experimenta o que de lúdico pode haver num país sem liberdade.
Não é que o autor idealize a inocência da infância, mas os seres, ainda que pequenos, são sínteses do que há no mundo, e assim nos são apresentados, com a força de serem crianças em suas pequenas e grandes crueldades, pequenos e doces sonhos. E isso no meio de uma guerra que não pediram e não entendem. Para além de ser um relato sobre a infância, é uma verdadeira incursão que decifra a Europa que poucos prestam atenção, aquela Europa do leste que marca ou marcou a memória ocidental ora com regimes comunistas, ora com o vazio de escombros de mudança de regime.
György Dragomán, apesar de jovem escritor, guarda dois romances premiados, uma literatura sem pretensão, vinda de um autor paciente e detalhista. Dragomán, que traduziu Joyce e Beckett para o húngaro, parece ter levado para a sua literatura essa condição de tradutor, que verte para outra língua toda a complexidade literária de seus autores preferidos, só que, no romance, traduzindo, pelo olhar de Dzsáta, os horrores de uma guerra na qual a condição de ser humano é equivalente a de poder ser menino e de acreditar na vida, na volta do pai, num jogo de bola e num jardim de tulipas.
O Rei branco/György Dragomán/Intrínseca/255 p./38 reais
Publicado no A tarde - caderno 2+ em 27/11/2009
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
sábado, 14 de novembro de 2009
Memórias póstumas do gato Ravic
“Antonio Martiniano é minha caixa-preta. Abram-no, nas páginas a seguir, e decifrar-me-ão.”
É o que escreve o gato Ravic, na forma de epígrafe, para nos incitar à leitura do seu romance-memórias-biografia enviesada. O gato Ravic está morto, escreve-nos no momento em que se mistura “à terra seca do quintal”. E o que escreve é não apenas as memórias póstumas da sua vida (e morte), mas, sobretudo, a biografia do seu dono-amigo Antonio Martiniano, jornalista desempregado e escritor frustrado, náufrago de uma perene crise econômica e existencial.
Um romance narrado post mortem por um gato filósofo e ilustre, amante de Turguêniev, Shakespeare e Cervantes, das coisas finas da vida e dos sofás e almofadas, que se autodenomina “estóico” e que, com seus “olhinhos mais-verdes-que-a-mais-esmeralda-das-esmeraldas”, observa aguçadamente as vicissitudes da vida humana e as comenta com língua afiada e sem concessões.
Essa inovação narrativa não é sem precedentes na literatura. Temos, por exemplo, o clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado já em 1880. Há também o exemplo do/a narrador/a (também póstumo/a) de Cómo me hice monja, que, como o próprio autor, se chama Cesar Aira, mas que fala de si mesmo/a no feminino, como uma menina. Temos o também clássico Niebla, do espanhol Miguel de Unamuno, onde o atormentado narrador visita o autor e, durante a conversa, descobre que ele é apenas uma criação literária do próprio Unamuno. E, no sentido do narrador-animal, temos Eu sou um gato, de Natsume Soseki, um romance satírico sobre a sociedade japonesa no início do século XX, cujo narrador é um gato que fala com a linguagem rebuscada e formal da aristocracia, completamente inapropriada para um simples gato.
No caso de Um náufrago que ri, Rogério Menezes explica que a intenção de usar um gato como narrador é “colocar no mesmo diapasão a dramaticidade presente em escritores como Graciliano Ramos, Dostoiévski, Turguêniev, Balzac e Henry James e a fantasia desvairada dos desenhos animados de Walt Disney”. O gato Ravic, pelo fato de ser gato e estóico, tem a capacidade de olhar para o mundo com ironia crítica e humor. Através da observação, da escuta de diálogos e das conversas que o dono tem com o gato, Ravic documenta e expõe sistemas filosóficos, como a dualidade corpo/pessoa, categorias nas quais Antonio divide os seus relacionamentos eróticos e amorosos: os encontros rápidos, numerosos, freqüentes, de pênis e esfíncteres ávidos em boates e saunas e ruas da cidade, ou o amor-obsessão por “pessoas”, que inevitavelmente termina em relações fraternais e assexuadas.
Ravic está convencido (ao contrário do Candide de Voltaire) de que vivemos no pior dos mundos possíveis, de que somos apenas “vulneráveis criaturas errantes submetidas ao errático sopro de algum deus-invariavelmente-bêbado”. Porém, perante o desespero do seu dono-amigo Antonio Martiniano e suas meditações sobre o suicídio, ele conclui: “Os suicidas são criaturas muito apressadas. Por que correr atrás da morte, se é ela quem inexoravelmente nos persegue? Não precisamos fazer nada para morrermos — é simplesmente respirar, relaxar, aproveitar, e deixar o tempo passar.”
O gato Ravic — literato e pensador — liberta-se das amarras dos gêneros: escreve narrativas, trechos em forma de ensaio, diálogos quase cinematográficos, parênteses explicativos, numa fragmentação criativa sempre salpicada de ironia e bom humor, mesmo ao tratar de temas como o câncer e a AIDS, a morte, o desespero, o suicídio. Mas, se o romance nos surpreende pela constante subversão das fronteiras entre vida e morte, narrador e autor, realidade e ficção, ele ainda nos reserva a surpresa de um post scriptum post mortem depois da página final.
Publicado em versão editada no Jornal A tarde - caderno 2+, 14/11/2009
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quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Carpinejar lança livro com textos publicados no Twitter
Tangerina é uma fruta didática. Não há como errar a divisão do gomo. 12:58 PM jun 21st from web
O livro do gaúcho Fabrício Carpinejar assim começa. Mas como a barra de rolagem ficou esquecida lá, no computador que “poeta” com vida própria virtual, o leitor precisa agir sobre as páginas dos livros e passá-las uma a uma para chegar ao início, que na obra impressa ficou no final, na última página. Que como não deslizam, as páginas do livro, nos deixam encontrar, fixadas lá, na pág. 83, as máximas de cotidiano e vida que no twitter.com/carpinejar já viraram arquivos. Velhos. O livro “começa” em junho e termina depois de setembro. Nunca mais saberemos quando, a não ser que encontremos os arquivos do Twitter “vivos”.
A filosofia começa onde a poesia termina. O filósofo herda o quarto bagunçado do poeta. 4:44 PM Aug 12th from web
Carpinejar foi premiado por inventar com arte e muito sossego poesia; por desafiar a ordem dela, os versos dela, por até disfarçá-la, cuidadosamente, em coisas ordinárias do dia-a-dia. Agora, ele chega com um outro rompante de criatividade e retidão: os aforismos que retornam, de suas mãos, com tanto de novidade, rasuras, cuidado pela vida dele, do leitor e delas, das palavras que quase parece que estamos diante de um jogo. A novidade está em trazer para o Livro o Twitter, por dar ao Twitter algo “novo”: pensamentos ao invés de vagas fofocas ou cápsulas de informações, por deixar, Twitter e Livro, cada um com “a sua praia”. E, nisso tudo, por oferecer ao leitor essa espécie de cinco minutos de sabedoria e de prazer. Não, de tweets.
No amor, o dente deseja roçar como o lábio, o lábio morder como o dente. 4:58 PM Aug 10th from mobile web
A arte de escrever em máximas, em condesados pensamentos, é antiga. Muitos filósofos e escritores se utilizaram desse gênero, alguns dos quais o próprio autor se diz leitor: Pascal, Karl Kraus, Goethe, Millôr, Clarice, Veríssimo, Quintana e outros listados na apresentação do livro. Mas os de Carpinejar tem algo particular: não extrapola os 140 caracteres permitidos pelo Twitter.
O escritor transforma a falta em vaidade. Ele vai se vangloriar inclusive do bloqueio criativo e escrever que não está conseguindo escrever. 12:22 AM Aug 5th from web
Como que marcando com compasso e não relógio esse tempo de poesia que já se extingue no ontem, o autor subverte os suportes, o tempo, a prática, a matéria e a literatura. O livro termina pelo começo e começa pelo final, que não sabemos se é presente ou futuro ou fantasia. A primeira página começa, ou termina, ou quem sabe prenuncie:
Quem anota para não esquecer esquece que o livro tem memória fraca. 40 minutes ago from web
Esses “40 min ago” é o tempo de eu dizer que li, e é o que o livro, para não esquecer, vai lembrar de dizer daqui a cem anos, dando ao leitor, “forever”, essa sensação de pertencer ao dia. Mas porque imprimir a palavra? Quem sabe para provar que o “pensador-poeta” virtual de fato se experimentou, a si mesmo, e também, sabiamente, nos testa no desvendar dos dias do lado de cá. No livro, sem login, pode-se transpor os limites das palavras e recriá-las como conselheiras de vida. Pois, sim, nesse livro não temos bytes nem barra de rolamento, contudo qualquer coisa de futuro. No livro também não se faz necessário conectar por cabo, smartphone ou WiFi.É livro com papel e tinta preta. Mas as palavras que registram o tempo, em inglês, elas, sim, são do Twitter. E o λόγος , afinal, que nos faz homens, registra sentidos no Twitter e no livrinho. E, assim, poesia, pensamentos, aforismos, tweets. Acréscimos e novas formas de fazer mais do mesmo.
O Twitter é um torpedo que a gente manda a si mesmo. E vai respondendo. 10:59 PM Jun 22nd from web
Publicado no Jornal A Tarde - caderno 2+ 11/11/2009
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Kent Williams
Para Pam e Isa
Mais um artista norte-americano. Conhecido por suas ilustrações de quarinhos, mas reconhecido e apreciado também pelo seu trabalho de pintura, com passagens pelo cinema e fotografia, Kent tem se destacado no cenário contemporâneo. Seu estilo é facilmente reconhecido, as texturas e cores assombram pela potência. Seu domínio do traço e dos pincéis são visivelmente explorados por ele, que deu uma outra cara aos "retratos" no nosso tempo.
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