sábado, 14 de novembro de 2009

Memórias póstumas do gato Ravic







“Antonio Martiniano é minha caixa-preta. Abram-no, nas páginas a seguir, e decifrar-me-ão.”

É o que escreve o gato Ravic, na forma de epígrafe, para nos incitar à leitura do seu romance-memórias-biografia enviesada. O gato Ravic está morto, escreve-nos no momento em que se mistura “à terra seca do quintal”. E o que escreve é não apenas as memórias póstumas da sua vida (e morte), mas, sobretudo, a biografia do seu dono-amigo Antonio Martiniano, jornalista desempregado e escritor frustrado, náufrago de uma perene crise econômica e existencial.

Um romance narrado post mortem por um gato filósofo e ilustre, amante de Turguêniev, Shakespeare e Cervantes, das coisas finas da vida e dos sofás e almofadas, que se autodenomina “estóico” e que, com seus “olhinhos mais-verdes-que-a-mais-esmeralda-das-esmeraldas”, observa aguçadamente as vicissitudes da vida humana e as comenta com língua afiada e sem concessões.

Essa inovação narrativa não é sem precedentes na literatura. Temos, por exemplo, o clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado já em 1880. Há também o exemplo do/a narrador/a (também póstumo/a) de Cómo me hice monja, que, como o próprio autor, se chama Cesar Aira, mas que fala de si mesmo/a no feminino, como uma menina. Temos o também clássico Niebla, do espanhol Miguel de Unamuno, onde o atormentado narrador visita o autor e, durante a conversa, descobre que ele é apenas uma criação literária do próprio Unamuno. E, no sentido do narrador-animal, temos Eu sou um gato, de Natsume Soseki, um romance satírico sobre a sociedade japonesa no início do século XX, cujo narrador é um gato que fala com a linguagem rebuscada e formal da aristocracia, completamente inapropriada para um simples gato.

No caso de Um náufrago que ri, Rogério Menezes explica que a intenção de usar um gato como narrador é “colocar no mesmo diapasão a dramaticidade presente em escritores como Graciliano Ramos, Dostoiévski, Turguêniev, Balzac e Henry James e a fantasia desvairada dos desenhos animados de Walt Disney”. O gato Ravic, pelo fato de ser gato e estóico, tem a capacidade de olhar para o mundo com ironia crítica e humor. Através da observação, da escuta de diálogos e das conversas que o dono tem com o gato, Ravic documenta e expõe sistemas filosóficos, como a dualidade corpo/pessoa, categorias nas quais Antonio divide os seus relacionamentos eróticos e amorosos: os encontros rápidos, numerosos, freqüentes, de pênis e esfíncteres ávidos em boates e saunas e ruas da cidade, ou o amor-obsessão por “pessoas”, que inevitavelmente termina em relações fraternais e assexuadas.

Ravic está convencido (ao contrário do Candide de Voltaire) de que vivemos no pior dos mundos possíveis, de que somos apenas “vulneráveis criaturas errantes submetidas ao errático sopro de algum deus-invariavelmente-bêbado”. Porém, perante o desespero do seu dono-amigo Antonio Martiniano e suas meditações sobre o suicídio, ele conclui: “Os suicidas são criaturas muito apressadas. Por que correr atrás da morte, se é ela quem inexoravelmente nos persegue? Não precisamos fazer nada para morrermos — é simplesmente respirar, relaxar, aproveitar, e deixar o tempo passar.”

O gato Ravic — literato e pensador — liberta-se das amarras dos gêneros: escreve narrativas, trechos em forma de ensaio, diálogos quase cinematográficos, parênteses explicativos, numa fragmentação criativa sempre salpicada de ironia e bom humor, mesmo ao tratar de temas como o câncer e a AIDS, a morte, o desespero, o suicídio. Mas, se o romance nos surpreende pela constante subversão das fronteiras entre vida e morte, narrador e autor, realidade e ficção, ele ainda nos reserva a surpresa de um post scriptum post mortem depois da página final.

Publicado em versão editada no Jornal A tarde - caderno 2+, 14/11/2009

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