sábado, 28 de novembro de 2009
Tulipas que brotam na guerra
"O oficial chamado Gyurka então olhou para minha mãe, balançou a cabeça, depois virou para mim e disse está bem, iriam embora, mas apenas porque ele via que nós gostávamos de flores, e quem gosta de flores não pode ser má pessoa.(...) O major também saiu, e minha mãe, então, quis bater a porta atrás dele, mas o major de repente se voltou na soleira, pôs o pé na porta para que minha mãe não pudesse fechá-la e disse, gentil, calmo, que ela ainda iria se arrepender daquilo."
Seria possível um relato mais verdadeiro de uma situação de violência e opressão do que o de um garoto de 11 anos? Não parece, depois de lermos “O rei branco”, segundo romance do escritor György Dragomán, nascido na Transilvânia. O narrador é Dzsáta, filho de um opositor ao regime político comunista, em um país do leste europeu, levado, num dia de domingo, para um campo de trabalhos forçados. E todos os dias viram domingos tristes enquanto Dzsáta aguarda, com esperança e uma fé cega, o retorno de seu pai. O romance possui traços autobiográficos, já que György e sua família deixaram o país em condições políticas igualmente tensas, embora o autor deixe claro que não passou pelas mesmas experiências que Dzsáta.
Sob o regime totalitário, os adultos são “monstros” corrompidos pelo sistema opressor e parecem querer a destruição de seus filhos, crianças sem futuro num país sem liberdade. Os professores, os adultos e os velhos vão assumindo a cara do “pai”, o Regime, e parecem reproduzir com prazer sádico as atrocidades sobre a infância que os sacode com sua indefensibilidade. O romance é construído com capítulos curtos, num estilo solto e às vezes desordenado, acompanhando a fluidez do pensamento infantil do narrador. Como se fossem para serem guardadas como memórias, as histórias vão girando em torno de pequenos detalhes, objetos que sobrevivem ao fim dos episódios como lembranças a serem colecionadas em gavetas. Bolas de futebol, robôs de plástico, tulipas, cadernos: rastros de meninos passando pela vida.
Terno (por conta de um narrador sensível) apesar de tanta dureza, o relato nos leva a testemunhar, em meio a um ambiente obscuro com a presença materializada do medo, o despertar da adolescência de Dzsáta. Somos cúmplices da sua primeira paixão, da descoberta do corpo feminino num rolo de filme escondido num depósito de cinema, das suas aventuras pelos campos vigiados, do roubo das tulipas, de suas mentiras para escapar dos castigos dos professores, de sua desesperada busca pelo pai e cumplicidade com a mãe. Somos também obrigados a enxergar o quão cruéis podem ser homens e meninos quando uma ditadura se instaura consumindo a liberdade que alimenta o espírito, a arte que alimenta os sonhos, a comida que alimenta o corpo.
Para chegar às questões políticas, o autor deixa livre a voz do narrador, sem tentativas de censura ou proteção à infância, mas acaba caindo em obviedades dicotômicas, apesar de explicitar a violência – física e psicológica – do sistema político repressor (No romance, todas as personagens comunistas são cruéis. Fácil demais para um escritor talentoso). O pai de Dzsáta desapareceu, seu avô, homem importante do regime comunista, consome-se de culpa por não falar com o filho traidor do regime, ignorando os apelos da nora para ajudar a encontrá-lo e trazê-lo de volta. Na escola, o garoto amarga a sua condição ambígua: filho de um “desertor” e neto de um importante nome daquele regime. O intervalo de espera pelo pai é preenchido pela descoberta das verdades do mundo dos adultos. O menino está crescendo e, enquanto isso, experimenta o que de lúdico pode haver num país sem liberdade.
Não é que o autor idealize a inocência da infância, mas os seres, ainda que pequenos, são sínteses do que há no mundo, e assim nos são apresentados, com a força de serem crianças em suas pequenas e grandes crueldades, pequenos e doces sonhos. E isso no meio de uma guerra que não pediram e não entendem. Para além de ser um relato sobre a infância, é uma verdadeira incursão que decifra a Europa que poucos prestam atenção, aquela Europa do leste que marca ou marcou a memória ocidental ora com regimes comunistas, ora com o vazio de escombros de mudança de regime.
György Dragomán, apesar de jovem escritor, guarda dois romances premiados, uma literatura sem pretensão, vinda de um autor paciente e detalhista. Dragomán, que traduziu Joyce e Beckett para o húngaro, parece ter levado para a sua literatura essa condição de tradutor, que verte para outra língua toda a complexidade literária de seus autores preferidos, só que, no romance, traduzindo, pelo olhar de Dzsáta, os horrores de uma guerra na qual a condição de ser humano é equivalente a de poder ser menino e de acreditar na vida, na volta do pai, num jogo de bola e num jardim de tulipas.
O Rei branco/György Dragomán/Intrínseca/255 p./38 reais
Publicado no A tarde - caderno 2+ em 27/11/2009
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