terça-feira, 5 de outubro de 2010
Alinhamentos da cidade
Publicado no Jornal A tarde, caderno 2+ em 02/10/2010
O resultado de “Noites urbanas”, primeira ficção adulta do jornalista Daniel Piza, não é surpreendente, mas aponta para algumas marcas que, quiçá, pairem sobre a produção contemporânea: cidade e sujeito compartilham um tempo de voracidade e de tensões que fragmentam ambos; linguagem que resiste a contrastes e se mantém na representação direta da cotidianidade; apropriação dos condensados e novos meios de expressão, seja na imitação da linguagem gerada por esses meios, seja na inclusão dos mesmos na dinâmica comunicativa das personagens: Twitter, Blogs, Orkut, MSN, etc.
Os minicontos e contos do livro oscilam. Alguns, como “A escada rolante”, cujas poucas linhas não conseguem sequer explorar o movimento e as imagens que o título sugere, “Auto estima” e “Memória do futuro”, povoados de clichês sobre o universo feminino, não mereciam estar no livro, carecem de “história” e ritmo.
Mas há ali contos que alcançam magistralidade narrativa. O mini-conto “A ficha” tem quatro linhas, mas se realiza de forma contundente, dispara as situações do dia-a-dia em um tema tão afetado: a traição, a separação. As poucas palavras do conto são suficientes para invadir a casa de casais citadinos de classe média e o leitor mergulha nas tensões insinuadas e absorve as intimidades das quatro personagens que aparecem em tão pouco espaço narrativo.
O conto “Jogo da verdade” é outro que atinge qualidade e atrai o leitor para a sua estrutura interna. Lembrando, talvez, um filme do movimento Dogma - ou outro desses que colocam casais juntos para explorar a dinâmica e o que sairá depois das hipócritas relações e aparências se desfazerem sob o peso da intimidade cotidiana- a narrativa movimenta as personagens em torno de situações corriqueiras e põe assim em cheque também as escolhas, apontando para uma visão pessimista: os sujeitos da cidade estão embrenhados em tanta vida que nem sabem viver. A traição e falsidade cegam fortemente e o desfecho do conto prende o leitor numa teia violenta.
“Ledinha” e “Circuito interno” têm boas propostas, ainda que ambos não logrem extrapolar uma história bem contada. Ainda assim, se observam as nuances de uma boa literatura urbana: as tensões são conhecidas, as personagens vivas: boa construção, aliás, das personalidades das personagens, nos dois contos, mulheres que lutam para ter-se livre das amarras da sociedade e reivindicarem seus espaços de protagonismo, dentro das armadilhas todas que a vida impõe ao gênero.
O livro de Piza escolhe o humor, um certo humor irônico, para tratar dos temas, mas algumas vezes esse artifício é o mesmo que compromete as histórias. Em todo caso, é uma coleção interessante de narrativas longas e curtas que trazem à tona a solidão, o “contágio” do desassossego urbano, as tensões, as nuances e a virtualidade de uma cidade como São Paulo, onde se pode ver que as personagens são tão vinculadas aos espaços que ali estão e seus cotidianos vorazmente devorados pelo caos que, sob a noite, adormece.
Noites Urbanas/Bertrand Brasil/176p
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