terça-feira, 5 de outubro de 2010

A graça das horas



Publicado no A tarde - caderno 2, em 11/09/2010


A língua portuguesa tem plantado hastes na poesia com Camões, Pessoa, Drummond, João Cabral, Cecília Meirelles, Bandeira, o polifônico Valencio Xavier e tantos outros que adormecem sob a nossa falta de cuidado. É talvez sob o peso desse quase silêncio em torno do poeta carioca Bruno Tolentino que a reedição de sua obra “As horas de Katherina” chega.
Além dos 166 poemas de “ As horas”, o livro traz ainda a peça inédita “A andorinha, ou: A cilada de Deus”, cuja dramaticidade e eloqüência surpreendem os bons conhecedores do gênero, e um belo prefácio de Alcir Pécora.
Os 166 poemas das Horas de Katharina, que versam sobre a conversão de uma carmelita, são um verdadeiro manancial de erudição do autor, que demonstra referências históricas e profundo conhecimento clássico, lingüístico, além de uma variada experiência poética com relação à forma, à rima, à metrica: versos decassílabos, hexassílabos, octassílabos, sonetos, sextilhas e assim seguindo por longo caminho de domínio da arte poética, sem, entretanto, deixar de exibir que a forma obedece ao pulso da poesia: nada deve – ou neste caso é - ser gratuito.
À primeira vista, a poesia de Tolentino pode assustar os que não percorrem as muitas referências abordadas formalmente e tematicamente. Nessa obra, o tema espiritual é explorado também intertextualmente, já que as referências ao “Livro de Horas”, destinado às orações privadas na tradição catolica, é não apenas na estrutura, mas na articulação e organização temática. Há ali a estrutura das missas, dos rituais de devoção, a cultura católica de rezas, orações e uma infinidade de ritos de passagem.
Os poemas são uma experiência intensa, espaço no qual se vivencia a exploração dos recônditos da alma numa atitude de devoção e perseguição do caminho espiritual da heroína. A solidão da experiência mística é tão visceral quanto é gracioso, e o espanto também faz parte da descoberta. Assim, poemas como “Miserere” “Vade retro”, “O espelho”, “As luas” dimensionarão na linguagem, no mote, na forma, uma vastidão de tempo e sentimento que se espera apenas de quem vivencia a experiência, tanto a mística quanto a humana diante de situações marcadas por ícones.
O interessante das 8 partes de “As horas” é que não se esgotam as possibilidades de leituras, tanto da “perigrinação” espiritual de Katherina quanto dos movimentos católicos míticos e místicos. Os poemas de “As horas” cuidam do ambiente interno do convento, e, metaforicamente, do espaço espiritual e da natureza humana; esse ambiente é vivenciado também nos processos formais de estudos, observações, encontros e tensões – ali há as rezas, orações, livros, passagens bíblicas e teológicas: referências que são assinaladas em notas para os que, como eu, não possuem todos os instrumentos de leitura, além de símbolos e expressões do universo popular - e a relação pessoal de Katherina com a experiência religiosa. Mas, o mais valoroso dessa nova reedição é que a peça inédita “A andorinha”, de certa forma, compõe e completa a épica passagem da heroína pois é sobre o universo exterior ao convento e as relações familiares da “persona”.
Os diálogos são um desenho maravilhoso da dramaticidade oral e, ao mesmo tempo, um vivo encontro de personalidades intensas e profícuas. Tem-se, no conjunto, o retrato completo de uma heroína (alter ego de Bruno, segundo Pécora).
Todo o livro é de uma experiência única e valiosa: ler Tolentino é um desafio e, ao mesmo tempo, é ler poesia de uma maneira que só a palavra mesma pode dimensionar: Poesia.
As horas de katherina/Bruno Tolentino/Record/399 p.

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