sábado, 30 de julho de 2011
Sem páginas, esse século 21 com livros
A experiência contemporânea da leitura e da escrita é única. Entretanto, a realização literária de um projeto é ainda mais particular no vão cibernético: barras de rolagem, posts, comments, sobreposições, espaços visuais: o livro-blogue desafia todos os lados da tal questão na era líquida da internet.
O que a escritora baiana Laura Castro realizou, depois de ganhar o prêmio de criação literária da Funarte, é, no mínimo, inquietante: um livro-objeto, um blogue-livro, um livro-experiência, formas e palavras sem páginas. Pelo menos sem páginas tais como as sabíamos.
“Cabidela” (“Breu” e “cabidela: bloco de máscaras”) correspondem a uma espécie de kit de leitura e escrita. A autora, junto com a artista Cacá Fonseca, elaborou um caminho até o leitor com elementos literários (narrativas curtas, poemas, cartas, romance epistolar — ou um “romance-post” ) com desenhos e acessórios que revelam a interativa relação (ou a ausência desta) do sujeito contemporâneo com o livro.
Mas elas fabricaram um material que eleva o livro, o blogue e o bloquinho de notas — que mesmo diferente me lembra o caderno fac-similado de Ana Cristina César —à categoria de objeto de arte. A interatividade talvez não surpreenda pelas possibilidades do leitor de escrever suas idéias ali, mas não há dúvida de que elas pesquisaram muito como fazer diferente, deixando ao leitor da era da blogosfera o caminho para explorar nesse livro diferente as suas habilidades, desafios e desejos.
O desenho gráfico é complexo esteticamente e simples na abordagem. As máscaras, as cartas, a disposição das letras nas páginas, as lâminas, folhas em branco, a inversão do texto, os desenhos à mão sobrepostos ao trabalho computadorizado, toda essa ludicidade é explorada como parte da natureza do próprio livro, que serve ao homem e à sua sensorialidade. E, claro, tudo se relaciona “ao livro” desse leitor tão específico: o da rede. É um blogue aquilo lá, nem me perguntem como.
Essas “partes” que configuram o “kit” encontram o texto de Laura Castro e suspendem o leitor que esteve distraído com os jogos ali: os textos são densos, intrigantes e bem cuidados. São de linguagem e estilo do tempo delas, Laura Castro e Cacá Fonseca, com a virtualidade da vida atravessando-os: no que eu chamo de romance-post quem sabe se a personagem existe, mas ela desloca-se numa estrutura narrativa próxima demais do nosso dia, incomodando o leitor e levando-o a um outro labirinto: “É uma página inteira e só. É um emaranhado de fios. Romance não é mais novelo.”
A fragmentação de algumas partes não são inconclusas em “Breu”; o leitor bem sabe que a história “linka-se” em algum lado mesmo quando perdida. É cuidadosamente narrado e o leitor pode optar, lembrando o nosso velho e bom Córtazar, por não começar linearmente. Lembrança também de Miguel de Unamuno com seus personagens questionando o personagem-autor.
Os textos, fragmentos ou poemas que embrenham-se pelo romance, enriquecem a híbrida forma ali. A personagem intima o leitor, prende-o naquele labirinto. O tempo é quebrado, alterado assim como a forma, na virtualidade da vida ou da história. O negócio vira cena, de um filme, de um vídeo, de uma paisagem dramática de homens-personagens. A narradora-personagem, uma escritora, de repente também diz: “Já havia tempo que eu não a narrava nada”.
Sem nem saber como, saltamos o cotidiano, os espaços de uma casa, nos encontramos na cozinha. Falamos de sonhos, de solidão, de amor, mesmo sem existirmos (personagens nos pensamos quase o tempo todo, num dos truques) e o espaço ora é definido ora desfeito sem dar tempo de pensar: “Fiquei um tempo vivendo sem bloquinho (...) Desde que o conheci, aqui, na praça dos 15 mistérios, vivi um tempo sem narração, sem apontamentos”.
Laura assume muitos dos problemas contemporâneos, joga-nos na cara a dificuldade de separar o joio do trigo na era digital, diz que seu “livro” é um blogue, que escrito está e ficará na rede, mas é o bloquinho de notas dela que vira tudo. É assim que ela corteja-nos, deixando claro que o tempo se apropria de tudo e quer sempre mais. Nada de máquinas de escrever, mas canetas e teclados de computador podem.
O bloquinho que vem com o livro é valioso. Os escritos são para ficar e seu/nosso “Borratório”, também o bloco de anotações da escritora de “Breu”, avisa-nos: “Daqui o bloco é líquido/o blogue escorre e evapora feito rio./O blogue impõe outra ordem,/A nova ordem.”
A autora parece não ter conflitos em pertencer ao tempo em que retrôs combinam com paisagens futuristas e desenhos computadorizados.
O livro “Cabidela” é um bom produto dessa época duvidosa de excessos. É um exemplo do que Roger Chartier e Umberto eco discutiram na conversa sobre o fim ou não do livro. Fim? Laura mostra como começo sem final esse vício de recriar o livro.
Cabidela/Laura Castro/Edição independente/R$30,00.
Amar sem Flores
O livro “Amar é crime”, do escritor pernambucano Marcelino Freire, chega provocando literariamente os que se detém sobre o amor (amor ou desamor, Marcelino?) para buscar seus sons, suas cores, suas caras, suas peles, suas suspeitas. E os sujeitos saídos do lado de lá também: gordas, velhos, prostitutas, criminosos, despeitados, desprezados, enjeitados.
Chamados pelo próprio de “Contos de amor e morte ou pequenos romances”, as partes de seu livro trazem narrativas condensadas, histórias submergidas em limo e coladas à linguagem, que despedaça-se, decompõe-se lentamente, afunila-se, como no conto “Liquidação”, com personagens disputando sofás e lugares de existir.
O autor, por todo o livro, oferece ao leitor uma musiquinha insistente de um verso só, um verso “fraco” qualquer do qual não nos podemos livrar. Mas aí está a força do seu livro: “Por causa delas – das rimas e dos fiéis e do vigarista deste pastor – é que o nosso país está o que está. Um horror!” A ironia e a exploração da linguagem vai sedimentando a desconfiança de todos, o narrador inclusive se coloca sob suspeita. No conto-romance “União civil”, questiona-se se o autor conseguiu mesmo escrever o “conto” sobre os dois homens com o carrinho de bebê. E o conto, pode-se dizer, é sobre a absurda resistência aos “dois homens com carrinho de bebê”.
As histórias vão trazendo surpresas e provocando o leitor com as descidas e subidas de ritmos - a oralidade é cada vez mais trabalhada pelo escritor como potência literária, estilo, matéria-, e com as rimas que brincam com o “kitsch” fazendo ecoar nos nossos ouvidos a tal musiquinha desgraçada.
O que acontece nas narrativas curtas são segredos estranhos: prostitutas que se constroem no desejo (de amarem ou serem amadas), juntamente com a “montagem” de seus corpos, como se vê em “Modelo de vida”, cujo encontro entre um gringo velho e uma garota de programa resulta numa caçada à roupa certa, a roupa que não engorde, que valerá o tempo de se ter uma pausa na dura resistência a um dia mais de vida “quase” bonita, “quase” feliz.
No conto “Vestido longo”, a órfã muito pobre - quase nua - acaba vestida com minissaias que a deixam ainda mais explícita na descaração da vida injusta que lhe roubou a mãe. Com rimas e pausas estranhas e criativas, acompanhamos a tragédia da mocinha que se presta à metáfora de tantas deste Brasil: “E assim fui ganhando casa, mortadela. Dormia em boleia, rede de pesca. No acostamento. Fui parar, pois, na casa de Dona Kalil. Mas sei rebolar. Rebolar, rebolar, rebolar.”
Com namorados vingativos, obesas desesperadas, velhos esquecidos, mocinhas rodadas, criminosos, o livro “Amar é crime” confirma a densidade da obra de Marcelino e, assim como “Contos negreiros”, ironia, linguagem, personagens, ritmo vão puxar o leitor para cúmplice de uma história grande, um romance viciado. Amar e morrer são a mesma coisa, só não rima. As rimas, aliás, deixam-nos boquiabertos no livro. Por isso, tanta feiúra ali é o oposto ao descuido; há trabalho grande nas narrativas, dedicado olhar, pena apurada. Marcelino condensa muito bem as histórias, deixa lugar para o leitor entrar, revolve as palavras de forma rara, ainda que comum em sua aparência.
Com cada conto-romance, um Brasil, uma alma. E cada tempo de amar ali é o segundo sutil que devemos achar. Personagens ao estilo do autor entregam “bilhetes” ao leitor perdido em cidades muradas. As bombas explodem sem parar e as rimas se tornam versos repetidos na nossa mente. Um mundo outro sem beleza, sem certeza, sem lugar certo para cair, sem alguém para nos desencalhar ou nos mover como se poderia mover uma obesa de duzentos e quarenta quilos. Amar sem flores sim.
Amar é crime/ Edith/169p/R$25
Nosso grão mais fino
Sob finas palavras: incesto e solidão em paragens nordestinas
Milena Britto
Não há como se evitar, muitas
vezes, a necessidade de reconhecer
ecos de autores conhecidos
nas páginas de novos romances.
Para muitos – dos novos
escritores – uma falta grave
do crítico que sai impondo influências,
diálogos e toda a sorte
de encontros. O mais exato,
porém, é que há mesmo um
extasiar-se do crítico diante do
fato de sentir-se íntimo, cúmplice,
poderoso por tal reconhecimento,
conquanto este tenha
ainda aagudezdosurpreendente,
do inesperado, do único.
Ao ler Nosso Grão Mais Fino,
primeiro romance do pernambucano
José Luiz Passos, não
pude sequer disfarçar que, de
alguma forma, estava, juntamentecomonarrador,
voltando
à casa da infância. E não apenas
pelas sagas e tragédias de famílias
que para nós deixaram
José Lins do Rêgo, Graciliano
Ramos, GuimarãesRosa–faróis
da prosa regionalista brasileira
– ou pela densa e retorcida ficção
de Raduan Nassar e Osman
Lins. Não foi só, mas também
esse eco literário ali encontrado
que me fez mais surpreendida
com a força da narrativa.
Além da riqueza com a qual
explora a intimidade das famílias
feudais nordestinas–donas
de fazendas e de vis segredos –,
há a vastidão de sentimentos
que povoa corpos e mentes dos
que se acorrentam (ou se libertam)
nas vielas do incesto.
A construção da história de
Ana e Vicente, unidos e desunidos
por um amor mais extenso
do que a infância, dá-se
extraordinariamente em uma
confluência de vozes narrativas,
comalternância de Vicente, Ana
e Zelino – irmão de Vicente, que
talvez nem tenha existido além
da imaginação do irmão, mas
que nos faz testemunhar a disputa
pelo amor da mesma moça,
que termina arrebatada pelo
próprio tio, numa truncada trama
de incesto, desejo, solidão e
angústia.
Linguagem e estilo se colocam
em diálogo fértil, com metáforas
preciosas, vocabulário
rico, deixando que o erudito e o
criativo se encontrem bem. Um
escritor culto e engenhoso, que
tanto se abandona na prosa
poética quanto bem controla as
camadas de histórias; que deixa
Fedra,umacadelaquemorreao
receber um tiro, ser uma homenagem
ao mundo mitológico
tanto quanto à Baleia de Vidas
Secas. Que divide bem o
amor, o ódio e o medo dos “filhos
dos pais”.
Com Anquises e Diana, as caçadas
pela memória do pai ou
pela perdiz mais bela deixam o
leitor solto no ar, sem a segurança
de moral ou de regras. O
destino junta mesmo Ana e Vicente,
contudo os leva para outros
mundos, para além das terras
nordestinas. Mas eles voltam.
Seja nessa memória encravada
por lá, seja nesse delírio
que nos metemos com eles.
Muito bom ter o encontro do
contemporâneo e da tradição
que nos guarda.
Éprosafina, essa.Esobopeso
deumtempoquenemopesado
relógio de um sacerdote pode
calar. Estranha saga misturada
com ficção científica, ou quiçá
com um realismo fantástico renovado,
na qual um misterioso
suicídio durante uma viagem
num zepelim conduz o leitor a
um Nordeste tão universal, de
engenhos de açúcar, de caçadas,
de amor e de segredos.Um
vício particular nosso – da boa
prosa – na escrita de um nordestino
que fez do seu êxodo a
volta eterna para casa.
NOSSO GRÃO MAIS FINO / JOSÉ LUIZ
PASSOS
Alfaguara / 157 p. / R$ 38 /
objetiva.com.br/alfagu
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