sábado, 30 de julho de 2011

Amar sem Flores


O livro “Amar é crime”, do escritor pernambucano Marcelino Freire, chega provocando literariamente os que se detém sobre o amor (amor ou desamor, Marcelino?) para buscar seus sons, suas cores, suas caras, suas peles, suas suspeitas. E os sujeitos saídos do lado de lá também: gordas, velhos, prostitutas, criminosos, despeitados, desprezados, enjeitados.
Chamados pelo próprio de “Contos de amor e morte ou pequenos romances”, as partes de seu livro trazem narrativas condensadas, histórias submergidas em limo e coladas à linguagem, que despedaça-se, decompõe-se lentamente, afunila-se, como no conto “Liquidação”, com personagens disputando sofás e lugares de existir.
O autor, por todo o livro, oferece ao leitor uma musiquinha insistente de um verso só, um verso “fraco” qualquer do qual não nos podemos livrar. Mas aí está a força do seu livro: “Por causa delas – das rimas e dos fiéis e do vigarista deste pastor – é que o nosso país está o que está. Um horror!” A ironia e a exploração da linguagem vai sedimentando a desconfiança de todos, o narrador inclusive se coloca sob suspeita. No conto-romance “União civil”, questiona-se se o autor conseguiu mesmo escrever o “conto” sobre os dois homens com o carrinho de bebê. E o conto, pode-se dizer, é sobre a absurda resistência aos “dois homens com carrinho de bebê”.
As histórias vão trazendo surpresas e provocando o leitor com as descidas e subidas de ritmos - a oralidade é cada vez mais trabalhada pelo escritor como potência literária, estilo, matéria-, e com as rimas que brincam com o “kitsch” fazendo ecoar nos nossos ouvidos a tal musiquinha desgraçada.
O que acontece nas narrativas curtas são segredos estranhos: prostitutas que se constroem no desejo (de amarem ou serem amadas), juntamente com a “montagem” de seus corpos, como se vê em “Modelo de vida”, cujo encontro entre um gringo velho e uma garota de programa resulta numa caçada à roupa certa, a roupa que não engorde, que valerá o tempo de se ter uma pausa na dura resistência a um dia mais de vida “quase” bonita, “quase” feliz.
No conto “Vestido longo”, a órfã muito pobre - quase nua - acaba vestida com minissaias que a deixam ainda mais explícita na descaração da vida injusta que lhe roubou a mãe. Com rimas e pausas estranhas e criativas, acompanhamos a tragédia da mocinha que se presta à metáfora de tantas deste Brasil: “E assim fui ganhando casa, mortadela. Dormia em boleia, rede de pesca. No acostamento. Fui parar, pois, na casa de Dona Kalil. Mas sei rebolar. Rebolar, rebolar, rebolar.”
Com namorados vingativos, obesas desesperadas, velhos esquecidos, mocinhas rodadas, criminosos, o livro “Amar é crime” confirma a densidade da obra de Marcelino e, assim como “Contos negreiros”, ironia, linguagem, personagens, ritmo vão puxar o leitor para cúmplice de uma história grande, um romance viciado. Amar e morrer são a mesma coisa, só não rima. As rimas, aliás, deixam-nos boquiabertos no livro. Por isso, tanta feiúra ali é o oposto ao descuido; há trabalho grande nas narrativas, dedicado olhar, pena apurada. Marcelino condensa muito bem as histórias, deixa lugar para o leitor entrar, revolve as palavras de forma rara, ainda que comum em sua aparência.
Com cada conto-romance, um Brasil, uma alma. E cada tempo de amar ali é o segundo sutil que devemos achar. Personagens ao estilo do autor entregam “bilhetes” ao leitor perdido em cidades muradas. As bombas explodem sem parar e as rimas se tornam versos repetidos na nossa mente. Um mundo outro sem beleza, sem certeza, sem lugar certo para cair, sem alguém para nos desencalhar ou nos mover como se poderia mover uma obesa de duzentos e quarenta quilos. Amar sem flores sim.
Amar é crime/ Edith/169p/R$25

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