terça-feira, 29 de dezembro de 2009
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Os labirintos da maçonaria
“Naquela noite, enquanto Mal’akh descia a rampa, os sigilos e sinais tatuados em sua carne pareciam ganhar vida sob o brilho celeste da iluminação do porão. Antes de adentrar a névoa azulada, ele passou por várias portas fechadas e encaminhou-se diretamente para o maior dos cômodos, no final do corredor.”
Perante a quantidade de críticas impiedosas que o novo best-seller de Dan Brown, O símbolo perdido, vem recebendo pelo mundo afora, é difícil ser original e dizer algo que não tenha sido dito. É que, no fim das contas, não é preciso grande erudição para perceber a falta de qualidades literárias numa obra desenhada para, no máximo, entreter e, sobretudo, para vender. Trata-se, em realidade, de uma repetição nada imaginativa da mesma fórmula usada em O Código Da Vinci: uma conspiração tramada por um vilão e a correria do protagonista Langdon para desvendar o mistério oculto, pseudo-ciência barata, uma dose de polêmica religiosa (bem mais moderada, no caso de O símbolo perdido), infinidade de clichês e lugares comuns disfarçados de revelações filosóficas e um suspense fácil que é a chave do page turner. O resultado é, como disse o crítico espanhol Rodrigo Fresán, “um folhetim cruzado com guia de turismo e a reciclagem de inverossímeis teorias já enunciadas até o cansaço”.
Entretanto, imunes à crítica e demais advertências (um jornal católico italiano esbraveja por não ser o romance suficientemente hostil à maçonaria, a Sociedade Maçônica o critica por conter erros e mistificações, amantes de Washington lamentam a imagem criada da cidade), leitores de todo o mundo correm às livrarias, atingidos por esse fenômeno inexplicável da indústria do best-seller. Em dois dias, mais de um milhão de cópias foram vendidas nos Estados Unidos, Canadá e no Reino Unido. Segundo informações divulgadas pela Doubleday, a primeira edição é de 6,5 milhões (a maior edição na história da Random House). O precedente de O Código de Da Vinci (mais de 81 milhões de livros vendidos desde o seu lançamento em 2003 e um filme homônimo protagonizado por Tom Hanks que ganhou mais de 758 milhões de dólares), somado à expectativa de seis anos de espera, garante a este novo romance vendas milionárias.
Mas o fenômeno não é tão inexplicável assim. A estrutura de folhetim, usando aqui a associação feita pela pesquisadora Nancy Vieira, com elementos de romance policial e os mistérios que envolvem religião, é por demais atraente. Leitores se sentem verdadeiros detetives e, ao mesmo tempo, sentem que vão ser especiais ao descobrirem o mistério religioso que as tramas de Dan Brown oferecem. A atração por isso chega a ser quase inevitável e não foram poucos os que, mesmo se dizendo críticos e amantes de Literatura, submeteram-se compulsivamente à leitura do Código Da Vinci. Esta que vos escreve agora passou também por isso. Contudo, a curiosidade se esgota logo diante das fórmulas repetitivas e depois nada fica dessas personagens, ao contrário de outros livros, como “O nome da rosa”.
Se a fórmula da construção do romance é a mesma utilizada no Código, a temática e o local da história são diferentes. Em vez da Igreja Católica e a Opus Dei, temos a maçonaria; em vez de Paris, temos Washington. O vilão, neste caso, chama-se Mal’akh, um eunuco musculoso e tatuado dos pés a cabeça, que seqüestra o amigo e mentor Peter Salomon, numa sequência de ações misteriosas, envolvidas em tensões e quebra-cabeças. Nem ele nem as outras personagens são desenvolvidas para além da superfície, e suas ações não fazem necessariamente muito sentido, mas isso não deixa preocupado o autor. A única coisa que parece lhe importar é criar os cenários e as situações necessárias para uma sucessão vertiginosa de acontecimentos, mesmo que inverossímeis.
A fascinação geral pelo mistério e pelo oculto é explorada nos segredos da maçonaria (sem que, evidentemente, o autor tenha tido acesso a eles), e o gosto pelo esoterismo e o além é satisfeito por uma mistura bizarra de suposta ciência e fórmulas(inhas) fáceis do “poder da mente sobre a matéria”, chamada “ciência noética”. E o pior: o autor tenta nos dizer que isso tudo “é verdade”… e podemos entrever um sorrisinho cínico e nada elogioso para a nossa inteligência.
Com essas matérias primas está posta a andar a engrenagem da máquina de fazer dinheiro. Milhões de livros vendidos e muitos mais por vender, traduções às pressas a dezenas de línguas, um filme em vias de criação por Columbia Pictures, “Dan Brown tours” aos locais em Washington onde se desenvolve a história, videogames e toda a enxurrada de subprodutos imagináveis. It’s show business.
O Símbolo perdido/ Dan Brown/Sextante Ficção/512 p/R$39,90
Publicado no caderno 2 do Jornal A tarde em 19/12/2009
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
A aldeia de Amós Oz
Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
As histórias em “Cenas da vida na aldeia”, de Amós Oz, deixam-nos suspensos de perplexidade, com uma sensação de angústia nebulosa, de perda e de incompletude. Sem falar de nenhum evento político envolvendo Israel e Palestina, Amós consegue trazer ao leitor uma atmosfera ríspida e incitá-lo no desejo de adentrar-se pelos arquétipos humanos que levam uma vida simples, aparentemente, mas com um peso não dito impossível de se ignorar. Tel Ilan, aldeia imaginária nas montanhas de Menashé, em Israel, é o cenário onde todas as histórias (menos a última) se desenvolvem. Aldeia antiga “que já completou os cem anos”, repete o narrador insistentemente, chamando a atenção para a relação do tempo com a geografia, num paradoxal sentimento do que é considerado velho, pois cem anos é absolutamente nada para uma aldeia.
O romance é composto de histórias que, lidas individualmente, são contos inteiramente independentes. As personagens de quem trata cada “conto” reaparecem em outros capítulos, mas apenas como figurantes, como pano de fundo para outras histórias. Multiplicidade de experiências individuais (cenas de vida) que compõem um panorama mais amplo que, lido como um todo, adquire uma unidade e um sentido distinto. Essa estrutura de capítulos independentes, o recurso de personagens reaparecerem e a mesma cidade ser cenário de todas as narrativas é, sem dúvida, uma referência ao escritor norte americano Sherwood Anderson, assumidamente uma influência para Oz.
O fio condutor que une as histórias é a perda (de pessoas, de passados, de liberdade). O sobrinho que a doutora Steiner espera não chega no ônibus onde deveria estar. O presidente do conselho procura sua mulher, que deixou um bilhete dizendo que ele não deve se preocupar e desaparece de casa. O ex-deputado Pessach Kedem briga, inconformado, com um passado traído e um presente desprovido de sonhos. A própria aldeia parece estar se perdendo, os seus habitantes se tornando apenas curiosidades exóticas de um passado anacrônico. Enquanto o turismo invade a aldeia, as casas transformam-se em pousadas, abrem-se boutiques e restaurantes. O passado parece estar se desmoronando, como se algo estivesse sendo cavado sob os alicerces, como na casa de Pessach Kedem, onde todas as noites se escuta o trabalho de gente misteriosa cavando sob o porão.
Há, neste sentimento de perda, uma dose de melancolia, de saudade de tempos outros. Mas há, também, uma sensação de que, nesse passado, escondem-se fantasmas, coisas que amedrontam, pequenos e grandes crimes, transgressões irresolutas.
A perda, porém, não leva ao fatalismo, à imobilidade ou ao desespero, mas a uma busca contínua. Trata-se de buscas inconclusas, do mesmo jeito que as próprias histórias são inconclusas. Essa falta de fechamento, esse suspense no qual o autor nos deixa uma e outra vez, faz-nos pensar que nem tudo foi dito. O mundo que Amós Oz nos mostra é sombrio, mas não desprovido de esperança.
Cenas da vida na aldeia pode ser lido como uma alegoria do Estado de Israel (embora o autor não goste disso), ou como um comentário sobre a angústia dos nossos tempos, ou até como uma reflexão sobre a idade e o processo de envelhecer. Certamente o conto (ou capítulo) “Os que cavam” contém comentários muito agudos sobre o Israel e as relações entre os judeus e os árabes. Quando Pessach Kedem questiona Adel, o jovem árabe que trabalha na sua casa, qual é a diferença entre israelenses e palestinos, Adel responde que ambos são infelizes, porém “Nossa infelicidade é por nossa causa e também por causa de vocês. Mas a infelicidade de vocês vem da alma.” E quando Pessach Kedem, desconfiado, diz à sua filha que Adel não gosta deles, ele acrescenta: “E por que gostaria de nós? Eu também não gosto de nós. Simplesmente não há do que gostar.”
Entretanto, qualquer interpretação redutiva faz violência à obra de Amós Oz. O romance é isso tudo (comentário político, reflexão existencial), mas é muito mais. O romance não é uma alegoria; é um olhar à complexidade da alma humana, retratada nas imagens e, sobretudo, nos silêncios destas cenas da vida na aldeia.
Cenas da vida na aldeia/Amós Oz/Trad. Paulo Geiger/Companhia das Letras/184 p./ 38 reais
Publicado em A tarde, caderno 2+ em 12/12/2009
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
The Soloist (O solista) - 2009
Eu fui sozinha e, quem sabe por isso mesmo, gostei muito, me emocionei. Dois filmes com a forte presença da música... Dessa vez, eram cenários já muito conhecidos para mim. Posso quase dizer que já vi o carrinho do Nathanael e já convivi com alguns Steves. De todo modo, me impressionaram as cenas de Los Angeles.
De profundis
Ontem fui com dois amigos, o C e a J, ver o filme "De profundis" de Miguelanxo Prado. Gostei tanto que resolvi, então, postar por aqui a resenha de uma outra amiga porque acho que toca nas coisas legais e é bem direta, além de bem escrita e menos passional do que eu teria sido.
Uma viagem ao som da música
Silvana Barretto Rezende
Uma busca rápida no google nos indica que De Profundis é o título de uma obra de Oscar Wilde, escrita na cadeia para um amante. Mas, De Profundis também é um filme contemporâneo de animação, ambientado no fundo do oceano e que em nada se refere à obra escrita por Wilde há mais de 100 anos. A começar pela falta de palavras no filme, não há vozes nem discursos, a trilha sonora é uma mistura de sons da natureza com uma música clássica, calma e bem marcada com os acontecimentos da história e sentimento das personagens. O diretor e ilustrador espanhol Miguelanxo Prado coleciona diversas publicações em revistas em quadrinhos e livros com histórias também assinadas por ele, além de ter desenhado para Holywood no filme “Men in Black”. O traço de Miguelanxo é característico de quadrinhos e funciona muito bem na animação já que são disformes e não lineares. Para o filme o ilustrador pintou 10 mil quadros posteriormente animados em computador. Façanha maior conseguiu o pintor e animador russo Alexander Petrov, vencedor do Oscar de melhor curta de animação em 2000 com “O Velho e o Mar” uma adaptação da obra de Ernest Hemingway. Petrov pintou com as mãos 29 mil vidros, seu suporte de pintura para animação, também para contar uma história de pescador e muita água, elemento difícil de representar e que em De Profundis é impecável. Na cena inicial, o grande oceano em movimento combinado com a câmera virtual, causa sensação de uma realidade de fantasia onde fecha-se os olhos para tentar ver melhor, se é verdade. O filme conta a história de um pintor que viaja com um grupo de pescadores e reproduz os peixes de cores fortes e formas estranhas. Durante uma tempestade o barco é engolido por uma onda gigante que os levam ao fundo do oceano. Numa ilha, na entrada de uma casa clássica européia, a companheira do pintor toca violoncelo enquanto assiste a um espetáculo de golfinhos. No profundo das águas o pintor flutua e se impressiona com a beleza do ambiente onde se surpreende a cada segundo. A subjetividade é bastante presente no filme, o que propõe uma relação de troca com quem assiste. A magia por vezes é desfeita com lapsos na técnica de animação das expressões das personagens e na ingenuidade de algumas cenas. Porém, propor uma hora e vinte minutos de desenhos em movimento acompanhado de música clássica não é desafio pequeno, conseguir a distribuição e projeção com público, um sonho realizado. De Profundis é um presente para todos aqueles que querem fugir de universos fantastigóricos e mergulhar em formas, cores e música suaves, com paisagens que relaxam e causam boa sensação. Mesmo com a técnica nos cutucando todo o tempo a animação ainda tem o poder de abstrair e fazer sonhar.
......
Ficha Técnica:
DE PROFUNDIS
de Miguelanxo Prado, Espanha/Portugal, 2007, 1h20, 10 anos
www.saladearte.art.br
sábado, 5 de dezembro de 2009
Un déjeuner avec Picasso: A literatura nada rosa das mulheres
Milena Britto- Professora do Instituto de Letras da UFBA
As particularidades de “A autobiografia de Alice B. Toklas”, de Gertrude Stein, são tantas que continuam rendendo leituras apaixonadas, pesquisas e estudos sobre a autora norteamericana. Comprovando isso, a edição que acaba de sair pela Cosac Naify, da coleção Mulheres Modernistas, é bela, luxuosa, com fotos de um dos casais lésbicos mais famosos da história literária, com posfácio de Silviano Santiago e sugestões de leitura. Uma reedição caprichada que faz jus ao empreendimento dessa autora do final do século XIX que desafiou até o fazer literário.
A primeira das curiosidades está no título da obra: o nome da autora está na primeira linha, contrastando com a proposta de ser a autobiografia de uma outra pessoa. A contradição dos dois nomes femininos vão se projetar num impossível jogo de espelhos: o gênero autobiografia, como reflexo de um espelho, exige que o nome da autora e da autobiografada coincidam, mas não é assim neste caso. Gertrude Stein e Alice B. Toklas fingem ser o “mesmo” sujeito na capa, rompendo um contrato de fidelidade do gênero e desafiando os leitores que tomam como verdade a palavra “autobiografia”.
O que Gertrude faz é pôr em questão a possibilidade de representação da história de uma vida em primeira pessoa. A autora se antecipa em mais da metade de um século às teorias mais inovadoras sobre o gênero autobiográfico que, na pós-modernidade, a crítica e a filosofia debatem dentro dos paradigmas da “desconstrução”. A ficção, a memória, a escrita de si, a reivenção do sujeito vão estar presentes na prosa fácil de Stein.
Além de tudo, O livro traz o panorama de trinta anos da vida vanguardista francesa, especificamente, revela-nos um efervescente e colorido quadro do ir e vir parisiense, contando-nos detalhes da vida de Picasso, Cézanne e outros artistas que cruzaram os portões da casa de número 27 da Rue de Fleurus. A Primeira Guerra também é tema da “vida” das duas mulheres e marca, no livro, a mudança de foco, que deixa de ser apenas o cenário artístico.
Por meio de uma escrita que desafia, por sua vez, os cânones narrativos, anulando o eixo temporal e convertendo em simultâneo e visual o espaço da memória, podemos ver, de 1903 a 1933, Alice e Gertrude tomando café com Picasso, jantando com Matisse, falando de chapéus com Marcelle Braque. Mas não é tudo, a autora faz dessa obra o caminho para se reinscrever na literatura, conforme o que diz Silviano Santiago no posfácio da nova edição brasileira: “A obra está comprometida com o desafogo da notável escritora que, tendo se exercitado na forma de narrar que inventara, não era compreendida.”
Contudo, a despeito de tantos aspectos culturais, artísticos e literários que fazem da obra o clássico que é, ainda nos sobra vislumbrar detalhes da vida desse famoso casal lésbico: Gertrude, de sua própria pena, se deixa ver com uma boa dose de egocentrismo, se achando “gênio” e assim se autodenominando, e ainda deixando-nos uma Alice que representa, dentro dos aspectos heteronormativos, o estereótipo feminino: cozinhava e fazia sala com as demais “esposas”.
G. Stein a autobiografia de Alice B. Toklas/autor: Gertrude Stein/ Cosac Naify/285 p./ 49 reais.
Publicado no A tarde, caderno 2+ em 05/12/2009
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