sábado, 5 de dezembro de 2009

Un déjeuner avec Picasso: A literatura nada rosa das mulheres



Milena Britto- Professora do Instituto de Letras da UFBA

As particularidades de “A autobiografia de Alice B. Toklas”, de Gertrude Stein, são tantas que continuam rendendo leituras apaixonadas, pesquisas e estudos sobre a autora norteamericana. Comprovando isso, a edição que acaba de sair pela Cosac Naify, da coleção Mulheres Modernistas, é bela, luxuosa, com fotos de um dos casais lésbicos mais famosos da história literária, com posfácio de Silviano Santiago e sugestões de leitura. Uma reedição caprichada que faz jus ao empreendimento dessa autora do final do século XIX que desafiou até o fazer literário.

A primeira das curiosidades está no título da obra: o nome da autora está na primeira linha, contrastando com a proposta de ser a autobiografia de uma outra pessoa. A contradição dos dois nomes femininos vão se projetar num impossível jogo de espelhos: o gênero autobiografia, como reflexo de um espelho, exige que o nome da autora e da autobiografada coincidam, mas não é assim neste caso. Gertrude Stein e Alice B. Toklas fingem ser o “mesmo” sujeito na capa, rompendo um contrato de fidelidade do gênero e desafiando os leitores que tomam como verdade a palavra “autobiografia”.
O que Gertrude faz é pôr em questão a possibilidade de representação da história de uma vida em primeira pessoa. A autora se antecipa em mais da metade de um século às teorias mais inovadoras sobre o gênero autobiográfico que, na pós-modernidade, a crítica e a filosofia debatem dentro dos paradigmas da “desconstrução”. A ficção, a memória, a escrita de si, a reivenção do sujeito vão estar presentes na prosa fácil de Stein.

Além de tudo, O livro traz o panorama de trinta anos da vida vanguardista francesa, especificamente, revela-nos um efervescente e colorido quadro do ir e vir parisiense, contando-nos detalhes da vida de Picasso, Cézanne e outros artistas que cruzaram os portões da casa de número 27 da Rue de Fleurus. A Primeira Guerra também é tema da “vida” das duas mulheres e marca, no livro, a mudança de foco, que deixa de ser apenas o cenário artístico.

Por meio de uma escrita que desafia, por sua vez, os cânones narrativos, anulando o eixo temporal e convertendo em simultâneo e visual o espaço da memória, podemos ver, de 1903 a 1933, Alice e Gertrude tomando café com Picasso, jantando com Matisse, falando de chapéus com Marcelle Braque. Mas não é tudo, a autora faz dessa obra o caminho para se reinscrever na literatura, conforme o que diz Silviano Santiago no posfácio da nova edição brasileira: “A obra está comprometida com o desafogo da notável escritora que, tendo se exercitado na forma de narrar que inventara, não era compreendida.”
Contudo, a despeito de tantos aspectos culturais, artísticos e literários que fazem da obra o clássico que é, ainda nos sobra vislumbrar detalhes da vida desse famoso casal lésbico: Gertrude, de sua própria pena, se deixa ver com uma boa dose de egocentrismo, se achando “gênio” e assim se autodenominando, e ainda deixando-nos uma Alice que representa, dentro dos aspectos heteronormativos, o estereótipo feminino: cozinhava e fazia sala com as demais “esposas”.
G. Stein a autobiografia de Alice B. Toklas/autor: Gertrude Stein/ Cosac Naify/285 p./ 49 reais.

Publicado no A tarde, caderno 2+ em 05/12/2009

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