sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A aldeia de Amós Oz


Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia

As histórias em “Cenas da vida na aldeia”, de Amós Oz, deixam-nos suspensos de perplexidade, com uma sensação de angústia nebulosa, de perda e de incompletude. Sem falar de nenhum evento político envolvendo Israel e Palestina, Amós consegue trazer ao leitor uma atmosfera ríspida e incitá-lo no desejo de adentrar-se pelos arquétipos humanos que levam uma vida simples, aparentemente, mas com um peso não dito impossível de se ignorar. Tel Ilan, aldeia imaginária nas montanhas de Menashé, em Israel, é o cenário onde todas as histórias (menos a última) se desenvolvem. Aldeia antiga “que já completou os cem anos”, repete o narrador insistentemente, chamando a atenção para a relação do tempo com a geografia, num paradoxal sentimento do que é considerado velho, pois cem anos é absolutamente nada para uma aldeia.

O romance é composto de histórias que, lidas individualmente, são contos inteiramente independentes. As personagens de quem trata cada “conto” reaparecem em outros capítulos, mas apenas como figurantes, como pano de fundo para outras histórias. Multiplicidade de experiências individuais (cenas de vida) que compõem um panorama mais amplo que, lido como um todo, adquire uma unidade e um sentido distinto. Essa estrutura de capítulos independentes, o recurso de personagens reaparecerem e a mesma cidade ser cenário de todas as narrativas é, sem dúvida, uma referência ao escritor norte americano Sherwood Anderson, assumidamente uma influência para Oz.

O fio condutor que une as histórias é a perda (de pessoas, de passados, de liberdade). O sobrinho que a doutora Steiner espera não chega no ônibus onde deveria estar. O presidente do conselho procura sua mulher, que deixou um bilhete dizendo que ele não deve se preocupar e desaparece de casa. O ex-deputado Pessach Kedem briga, inconformado, com um passado traído e um presente desprovido de sonhos. A própria aldeia parece estar se perdendo, os seus habitantes se tornando apenas curiosidades exóticas de um passado anacrônico. Enquanto o turismo invade a aldeia, as casas transformam-se em pousadas, abrem-se boutiques e restaurantes. O passado parece estar se desmoronando, como se algo estivesse sendo cavado sob os alicerces, como na casa de Pessach Kedem, onde todas as noites se escuta o trabalho de gente misteriosa cavando sob o porão.

Há, neste sentimento de perda, uma dose de melancolia, de saudade de tempos outros. Mas há, também, uma sensação de que, nesse passado, escondem-se fantasmas, coisas que amedrontam, pequenos e grandes crimes, transgressões irresolutas.

A perda, porém, não leva ao fatalismo, à imobilidade ou ao desespero, mas a uma busca contínua. Trata-se de buscas inconclusas, do mesmo jeito que as próprias histórias são inconclusas. Essa falta de fechamento, esse suspense no qual o autor nos deixa uma e outra vez, faz-nos pensar que nem tudo foi dito. O mundo que Amós Oz nos mostra é sombrio, mas não desprovido de esperança.

Cenas da vida na aldeia pode ser lido como uma alegoria do Estado de Israel (embora o autor não goste disso), ou como um comentário sobre a angústia dos nossos tempos, ou até como uma reflexão sobre a idade e o processo de envelhecer. Certamente o conto (ou capítulo) “Os que cavam” contém comentários muito agudos sobre o Israel e as relações entre os judeus e os árabes. Quando Pessach Kedem questiona Adel, o jovem árabe que trabalha na sua casa, qual é a diferença entre israelenses e palestinos, Adel responde que ambos são infelizes, porém “Nossa infelicidade é por nossa causa e também por causa de vocês. Mas a infelicidade de vocês vem da alma.” E quando Pessach Kedem, desconfiado, diz à sua filha que Adel não gosta deles, ele acrescenta: “E por que gostaria de nós? Eu também não gosto de nós. Simplesmente não há do que gostar.”

Entretanto, qualquer interpretação redutiva faz violência à obra de Amós Oz. O romance é isso tudo (comentário político, reflexão existencial), mas é muito mais. O romance não é uma alegoria; é um olhar à complexidade da alma humana, retratada nas imagens e, sobretudo, nos silêncios destas cenas da vida na aldeia.

Cenas da vida na aldeia/Amós Oz/Trad. Paulo Geiger/Companhia das Letras/184 p./ 38 reais

Publicado em A tarde, caderno 2+ em 12/12/2009

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