terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Refrão da Fome, de J.M.G Le Clézio









Há pouco tempo saiu, no Brasil, o último romance do vencedor do Nobel de 2008, Jean Marie Gustave Le Clézio, “Refrão da fome”. O autor francês, que fez das Ilhas Maurício o seu lar, traz mais uma obra com inspiração autobiográfica.
O livro está centrado na figura da mãe do autor, uma moça que cresceu em Paris no período entre as guerras mundiais. Na figura da personagem Ethel e nas rodas de imigrantes da primeira geração, chegada das Ilhas Maurício, a fantasia convive de forma perigosa e suicida com a realidade. A história narra a falência econômica da burguesa família Brun, originária das colônias, em paralelo com a história da neurótica preparação ambiental da Segunda Guerra Mundial.
A família é composta por três pessoas, mãe, pai e a única filha, a jovem Ethel, uma adolescente vivaz, criativa, que perde seu avô a quem devotava uma profunda amizade e vivencia a solidão da adolescência entre o mundo dos adultos, os quais descobre ardis e maquiavélicos, e a atraente cena à margem de casa. Experimentando, entre mundos e sentimentos ligados ao maravilhoso, os primeiros amores por uma amiga de sua idade e depois descobrindo a realidade de forma bastante crua, Ethel vai direcionar o leitor para ser o espectador de uma história familiar, conservada com tons de memória grandiosa, ao mesmo tempo em que se observam os ecos de uma tragédia para o mundo.
Le Clézio, que foi um escritor experimental e mais ousado na sua juventude, é mesmo um mestre em narrar sem que aparentemente ocorram grandes fatos e quando, no “Refrão”, descreve-nos o céu, os caminhos, as casas, as pessoas e os encontros, está mostrando a ascenção de Hitler, a ocupação alemã na França, o extermínio dos judeus, a queda do nazismo e a vitória dos aliados. O autor se mostra muito equilibrado no manejo da linguagem e do ritmo, e por trás de uma aparente simplicidade esconde-se uma complexidade e um trabalho artesanal de muito tempo que não deixa de ser percebido.
Entretanto, há um excesso de recordações na narrativa que parece ter mais sentido para o autor do que para o próprio romance, este oferecido aos leitores como um manancial de experiências. Muitas vezes, a sensação é de estar sendo testemunha não da história do outro, mas da tentativa do outro de contar a sua história, a qual se escuta mais por educação do que por interesse. Isso ocorre em algumas das passagens do livro. Com mais de duzentas páginas, muitas dedicadas às lembranças das Ilhas Maurício, a narrativa se torna um pouco cansativa com tanta evocação, já que o leitor comprometido tenta submergir-se nesse convite à memória alheia, tarefa que em duzentas páginas resulta ingrata se não é oferecida algum tipo de recompensa.
Mas ainda com esse perigo, o bolero que se pode escutar no romance e a caminhada de Ethel naquele mundo burguês se fraturando, entre o medo, a tensão e a vontade, enquanto a cena lá fora também se tensiona e se mostra terrivelmente cinza, fazem do romance uma obra que merece a atenção do leitor.

Refrão da fome/ J.M.G. Le Clézio/Cosac Naify/ 249 p/ $ 49 reais

Publicado no Jornal A tarde, caderno 2+ 16/01/2010

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