terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Um pôr-do-sol com Clarice





Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da UFBA



A autora brasileira mais enigmática é Clarice Lispector. E talvez por isso seja difícil não se comover diante da promessa de revelações sobre a sua vida. Há duas semanas, desde que recebi o exemplar da sua nova biografia (ou talvez mais acertadamente “ensaio biográfico”, como sugere Rachel Lima), que eu andava perplexa diante da possibilidade de descobertas naquelas páginas.
A obra do tradutor e crítico literário Benjamin Moser, Why this world, recebeu, em português, o bem pensado título Clarice,. Assim mesmo, o primeiro nome dela acompanhado de uma vírgula –– a própria Clarice adotou uma vírgula como início de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres –– e pode ser lido como uma espécie de vocativo ou como o início de uma explicação sobre o “objeto”. E às duas coisas se presta, de fato, o título.
Mas porque querer saber tanto sobre ela? É a pergunta primeira. Assim, Moser surge como uma espécie de lighthouse man e queremos dele tudo o que nos ajude a decifrar Clarice, “uma esfinge” como bem lembrou Nancy Vieira, para chegar mais perto de sua obra.
Nascida em um pequeno povoado da Ucrânia, Clarice carregou a marca de estrangeira, a despeito de sua intenção de tornar menor e imperceptível o fato de ser uma judia nascida em outro país. Era o Brasil que ela queria como sua terra, conforme ela mesma diz em uma de suas muitas viagens, olhando desde um terraço para uma floresta escura e gelada na Rússia, lugar mais próximo de sua terra a que chegou: “Mas eu pertenço mesmo é ao Brasil”. Esse é um dos temas sobre os quais se debruça o autor da mais recente e extensa biografia de Clarice: sua origem. E com isso traz a reconstrução histórica do período em que a família Lispector se vê obrigada a deixar a Ucrânia para não sucumbir aos cruéis horrores que os sionistas experimentavam depois da Revolução Russa.
Clarice, acaba de ser publicado no Brasil, mas já causou alvoroço nos Estados Unidos, ganhando destaque no New York Times e no Economist, e chegando à lista dos 10 livros mais “notáveis” de 2009. É a primeira biografia de Clarice a sair lá, enquanto aqui temos a de Olga Borelli.
Moser escolheu seguir um caminho didático e cronológico, explorando o contexto histórico em que viviam os pais de Clarice, e termina por oferecer dados significativos sobre a situação dos judeus no Brasil. Contudo, algumas das alusões à família são frágeis, pois não passa de interpretação sobre as obras escritas por Elisa, irmã de Clarice, e de fragmentos da escrita da própria biografada. Um exemplo é o suposto estupro sofrido pela mãe da escritora e a sífilis que a teria acometido como conseqüência da violência sofrida, o que a teria levado, depois de muito sofrimento, a uma morte dolorosa que estaria para sempre na memória de Clarice e de suas irmãs.
O autor, com a sua excelente condição de pesquisa, percorreu quase todos os lugares pelos quais teria passado Clarice e recolheu, de fato, muitas informações relevantes. Em alguns momentos, as aproximações feitas entre obra e vida soam forçadas, mas, em outros, Benjamin realmente encontra ecos da vida na obra, o que não é de se estranhar em se tratando de escrita tão visceralmente íntima. Assim, uma Clarice mais completa vai surgindo, transparente em alguns momentos, complexa em outros.
A relação com as irmãs e com o marido, a sua paixão por Lúcio Cardoso e por Paulo Mendes Campos, a sua impotência desesperada diante da enfermidade de Pedro, o filho que desenvolveu esquizofrenia ainda criança, a sua crescente dependência de antidepressivos e a sua tristeza depois da grave queimadura que sofreu, quando adormeceu com um cigarro aceso incendiando a casa, revela uma Clarice absurdamente humana, como ela sempre desejou.
E foi seguindo as pistas de Moser que parei, diante do pôr-do-sol da Barra, com o livro abraçado ao corpo, perguntando-me como Clarice poderia sair daquela sombra que pairava sobre ela. E a resposta simples, oferecida por Sérgio Cerqueda, quase constrange-me: “Mas Clarice nunca foi sombra, ela é pura luz”. Está, portanto, resolvido o problema. Benjamin não ilumina Clarice, ela, sim, a ele e a nós, deixando-nos mais perto do que lhe é mais caro: sua literatura.


Clarice,/Benjamin Moser /Editora Cosac Naify/ tradução de José Geraldo Couto/ 648 páginas/ R$ 79


Trechos:

“Tornou-se cada vez mais comum referir-se a Clarice como um monstre sacré, uma pessoa cuja combinação de gênio e estranheza situavam de algum modo fora da sociedade humana normal. O epíteto lhe desagradava terrivelmente”.

"Não havia característica que Clarice Lispector mais quisesse perder do que o local de nascimento. Por essa razão, a despeito da língua que a prendia lá, a despeito da honestidade por vezes terrível de sua escrita, sua reptuação é de ter sido um tanto mentirosa. Mentiras inocentes, como os poucos anos que tendia a subtrair de sua idade, são vistas como coqueterias de uma bela mulher. No entanto, quase todas as mentiras que contou tinham a ver com as circunstâncias de seu nascimento.”

“Enquanto Clarice tentava, ainda que de modo doloroso e incompleto, abrir-se para o mundo, seu primeiro amor, o herói de sua adolescência, Lúcio Cardoso, estava morrendo.”

“Numa época em que até visitas ao psicanalista muitas vezes eram realizadas às escondidas, em que qualquer problema psicológico era visto como uma vergonha, Clarice não tinha a quem recorrer, e à medida que Pedro [o filho] ficava mais doente a sensação de solidão dela foi se tornando implacável.”

“Ulisses [o cão] era um amigo para Clarice, é claro, e o amor dela por animais e crianças era um amor por sua inocência e ternura. Eles absorviam avidamente o amor que, quando dirigido a adultos, trouxera a ela tantas decepções.”

Publicado no caderno 2+ do A tarde em 02/01/2010

2 comentários:

  1. que bela maneira de iniciar 2010!
    lendo você falando de Clarice!
    obrigada por isso!
    beijo.

    ResponderExcluir
  2. Karina, foi também, para mim, um começo de ano especial revisitando Clarice. Compartilhamos ela no nosso início de ano. Gracias por sua leitura da leitura :-)

    ResponderExcluir