quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Vida e morte em corredores de hotel





“Eu faria se tivesse só uma fração desse tempo com todo o peso do meu corpo de novo se pudesse (e dessa vez eu ia me jogar de propósito uuuuu –
- huuuuu dessa vez eu ia contar no caminho, um elefante dois elef-ahh) se eu pudesse sentir de novo, como bati no chão, do porão, vinda de quatro andares de altura, dos pés à cabeça, morta à beça. Perna morta. Braço morto. Mão morta. Olho morto. Eu morta, quatro andares entre mim e o mundo, foi só isso que precisou para me levar, foi a medida, a dimensão e a morte, a curta desped-.”
A sensação que eu tive foi a de que assistia a um filme de trás para a frente enquanto entrava na intimidade das personagens. Isso foi uma tacada de mestre da escritora escocesa Ali Smith: aproximar cinema e literatura, morte e vida, lugar nenhum e o lugar mais íntimo de cada um em seu livro “Hotel Mundo”, que venceu, em 2002, o “Scottish Arts Council Book of the Year Award”.
Lançado no Brasil em 2009, o livro traz cinco personagens, todas mulheres, que tem as suas vidas vinculadas a um hotel. O que seria um final trágico é o início de tudo: a jovem camareira Sara cai do fosso do elevador do hotel em que trabalha e morre. E ela própria nos conta isso.
Descrito, o acidente, com uma linguagem criativa e fragmentada, mas com o ritmo de uma queda e do que seriam aqueles milésimos de segundos que se desdobram em mil, conforme se prega a lenda de quem esteve à beira da morte, o leitor consegue, como se diante de uma tela de cinema, experimentar as imagens detalhadamente enquanto mergulha com Sara nas suas memórias de viva e nas suas descobertas de morta.
A duração da queda é uma unidade de tempo importante e revela as peças de um jogo da autora: o tempo não é físico, é linguagem e é metáfora de como se sente a vida, assim como o hotel, mesmo que um espaço físico no romance e o cenário de cinco narrativas, é também uma metáfora de transitoriedade, de “lugar nenhum”. É nesse jogo que consiste, talvez, os grandes movimentos literários feitos por Smith, pois o espaço, o tempo, a vida e a morte se transformam em matéria e se deslocam de seu propósito.
A banalidade do cotidiano é transformada em algo profundo; cada fragmento de vida daquelas mulheres não é desprovido de sentimentos; cada detalhe da história interage com um ponto de desejo, lembrança, desespero ou solidão.
As personagens, desde Sara, que passa a vagar por uma cidade qualquer depois de sua morte, passando por Else, uma moradora de rua que questiona o “outro” que invade o seu espaço, a irmã caçula de Sara, Claire, que mergulha em uma busca pela tragédia de sua irmã para não perder a si mesma diante daquela falta, Lise, a recepcionista que desdobra-se em desejo de ser uma pessoa melhor e de deixar o mundo das “doenças”, e até a redatora de guia de hotéis Penny, entediada e desiludida, vão seguir um caminho: aproximar e ao mesmo tempo distanciar o leitor a uma terceira realidade, a que não está na vida e nem na morte, mas nos mistérios que envolvem morte e vida.
O fluxo de consciência das personagens, usado pela autora em todas as seqüências, cola-se aos fatos narrados e à linguagem inventiva, original e fragmentada. Com páginas inteiras sem pontuação, Ali Smith usa a estrutura da escrita de internet, da escrita de artigos e cartas, de oralidade e de verborrágicos tratados. O seu estilo narrativo, que muda a cada personagem que é introduzida, e o evidente jogo de espelhos, multiplica as possibilidades de que haja uma história maior, uma que possivelmente vai mostrar que tudo aquilo é memória de “uma só”.
Ali Smith já havia deixado suas marcas em outras obras, como “Por acaso” e “Garota encontra garoto”, mas “Hotel Mundo” é um grande livro que condensa o que de melhor há nos anteriores. E ainda nos deixa o gosto de autores que poderíamos colecionar por ali, de diferentes tradições e países, como Joyce, Ana Cristina César, Clarice, Diamela Eltit.
“Hotel Mundo” poderia ser um filme. Denso, não linear e cheio de flash back. Mas é literatura e diante disso não se escapa: a nossa alma está presa ao olho “de dentro”. Ver desde ali, daquele ponto cego interno, a queda de Sara, é a única forma de ver tudo o que o olho “não vê”. Mortos e vivos podem ser uma coisa só.

Hotel Mundo/Ali Smith/ Trad. Caetano W. Galindo/Companhia das Letras/ 232 p/R$ 45

Publicado no caderno 2+ 25/01/2010

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