terça-feira, 20 de abril de 2010

Roberto Bolaño: assassinato e poesia no Chile sob ditadura




Um avião faz piruetas no céu sob o olhar de militares, pessoas da alta burguesia chilena e jornalistas. Da fumaça e dos loops, versos que são mais adivinhados do que vistos. Eles estão a falar de morte, amizade e amor e, antes de serem em frases completados, já se desmancharam no ar. O piloto do avião, uma personalidade dupla: assassino de direita e poeta. Como aqueles versos, os corpos desaparecidos na ditadura de Pinochet também falam pelo silêncio de sua existência: sumiram, mas já tinham riscado a vida. Poetas e assassinos são escrutinados pelo autor, do ponto de vista da arte, da memória, e também da culpa.
Assim de paradoxal é o ponto central da narrativa de Roberto Bolaño no livro “A estrela distante”, mas muito mais complexas são as histórias periféricas que o narrador nos tenta contar. Mantendo o seu estilo já tão exaltado pela crítica hispano-americana, onde aspectos da literatura policial se mesclam à grande indagação em torno do que é a literatura e seu efeito, Bolaño recupera personagens de outro de seus livros, “La literatura nazi”, para voltar ao tema do duplo, seguindo a tradição da literatura que, de Edgar Alan Poe passando por Cortázar, Saer e Borges, tem fascinado escritores de várias gerações.
O narrador, um poeta chileno exilado por causa da ditadura de Pinochet, vai contar a história do misterioso Carlos Wieder que, anos antes, usava o nome de Alberto Ruiz- Tagle e freqüentava as mesmas oficinas literárias que ele e outros tantos jovens apaixonados pela poesia. Nessas oficinas também se falava de luta revolucionária. Diego Soto e Juan Stein são os dois “mestres” daqueles jovens ávidos pela arte poética e, com oficinas literárias esteticamente rivais e posições diversas quanto à “esquerda”, ambos trazem o tema da política e irão, de maneira diferente, no exílio perecer, levando o leitor a uma reflexão sobre o destino da poesia e do pensamento político e intelectual da década de setenta no Cone Sul.
O narrador usa o poeta Bibiano, seu melhor amigo – um obcecado pela figura assassina que conhecera quando jovem-, para conduzir os passos primeiros da investigação em torno do protagonista Wieder. A investigação, cujas provas são compostas por revistas, fotografias, filmes pornôs, publicações alternativas, propaganda de seitas, etc, é depois assumida por um investigador que acaba deixando nas mãos do poeta-narrador a conclusão e o fechamento de um ciclo de terror.
O que pareceria absurdo, nessas histórias que trazem poesia, política, arte e ditadura, é tão real que nos deixa sem ação. A memória coletiva de toda uma geração está em jogo, assim como a memória individual que necessita ser recomposta. O universal e o particular se entrelaçam para deixar as marcas de uma história que só se justifica pela crueldade humana e esse tema, o do mal, tem seu exórdio aprofundado no romance. Do Chile à Nicarágua, El Salvador, e Angola, o tema da ditadura e revolução vai sendo explorado, ao mesmo tempo em que o exílio jamais significou a liberdade, posto que a memória do narrador ficou presa a esse passado e ele já quase não escreve.
A poesia, a literatura, a arte, é esteio da vida e da morte, é consciência e é igualmente culpa. O romance de Bolaño, com o tema do duplo e o enigma a ser resolvido, nos deixa frente a uma peça difícil de ser (re)composta, e para se chegar a algum lugar é preciso trilhar o caminho da literatura tal e qual o detetive na obra. A nossa memória, como a do poeta, fica presa no céu do Chile sob os corpos que desaparecem, as vozes que se calam e os versos que não se completam.
Estrela distante/ Roberto Bolaño/Cia das Letras/143p/35,00

publicado no jornal A tarde de 17/04/2010

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