segunda-feira, 17 de maio de 2010

Murmúrios, latidos, caminhos e deserto na obra de Juan Rulfo



“Assim nos deram esta terra. E nesta chapa quente querem que semeemos as sementes de algo, para ver se algo brota daqui. Nem urubus.” (A terra que nos deram, Juan Rulfo)

O caminho de Juan Rulfo é longo; é intercalado de espaços vastos e plenos ainda que aparentemente recortados. A sua escrita, ainda que pequena em quantidade, é superlativa em qualidade e, sobretudo, em seu efeito visceral. Por “Pedro Páramo” e “A Planície em Chamas” somos todos marcados: a desolação como que nos “atrapa” naquelas paisagens internas e externas onde vida e morte se confundem e deixam algo de incômodo.
O México, por trás de suas cores e suas pirâmides astecas e maias, ardia em desigualdades, revoluções, gritos e violência contra os “campesinos” – hoje não é tão diferente -, então, era preciso mergulhar na falta de sentido dos homens e desnudá-los em natureza, desejos, medos e sonhos. Era preciso prender o homem na paisagem desértica de seu próprio temor, de sua própria ilusão e, o mais fantástico: prendê-lo em sua inviolável “realidad”.
Em espaços íntimos, Rulfo se moveu tão silenciosamente a ponto de que, ao ouvirmos as vozes vindas de “Pedro Páramo”, seguimos também um caminho em círculos, inconcluso - mas extenso- em direção às profundas terras, aquelas despovoadas, mas cheia de existência silenciosa que grita. E os gritos de dentro e de fora nos chegam de maneiras diversas, ouvindo o ladrar dos cães enquanto se atravessa o deserto sem fim para achar socorro ou sentindo o que há por trás da simples constatação em um conto sobre mais uma dessas regiões castigadas por toda sorte de infortúnios: “É que somos muito pobres”.
Esse andarilho não se contentou na impressão de suas pisadas nas paisagens mexicanas, quando de uma ponta a outra do país se movia para colher dados para o seu trabalho na agência de imigração do governo: levou o seu trajeto, ou seja, o México interior, para a escrita, mas de forma maravilhosa em seu sentido literário e lingüístico, conseguindo, assim, evitar e suplantar a leitura social imediata e passível de vícios. Unindo o misterioso e o real, Rulfo consegue que, em sua literatura, se revelem as duas mais destacadas capacidades da arte: imitar a vida e suscitar a fantasia. E, no caso desse escritor mexicano, a fantasia e a realidade estão no mesmo plano e obedecem ao mesmo impulso: compreender de maneira íntima o espaço que os homens habitam, seja esse físico ou psicológico. Seja o chão para caminhar ou o caminho sem estradas.
Isso quer dizer um encontro com tudo: a terra, as tradições, as experiências vivenciadas, o ritmo das conversas, o universo subjetivo de onde se escapam os pensamentos; a capacidade de que uma gota de chuva seja descrita numa terra de calor infernal sem que jamais tenha caído, o que não impede que Rulfo nos toque com o efeito dessa gota tal qual nos toca a frase repetida pelo filho mais velho de Fabiano ao receber da mãe a definição de inferno em “Vidas secas”: “Inferno, espeto quente, espeto quente...”
Os textos de Rulfo evitam o determinismo, a explicação simplificada das razões pelas quais os homens se intrometem na natureza a tal ponto de confundirem-se com ela. A miséria, a pobreza, a solidão e o vazio estão vertidos de força que ultrapassa o plano real, e no simbólico se revelam mais. Assim, pode-se perceber a força política de seus textos e jamais esgotar ali a possibilidade de compreensão e revisão da realidade. As terras sem lei, a presença do sagrado, a explicação fantástica, quase surreal, das coisas e a vontade de existir para dominar a terra e vencer as adversidades, do espírito ou do corpo, ou a injustiça dos fortes contra os fracos, fazem com que todas as experiências dos contos de Juan Rulfo sejam possibilidades únicas de se entender esse sujeito que foi escolhido para ficar de fora de qualquer coisa acolhedora; ao contrário, a ele sendo dado ocupar os espaços adversos e percorrer sem fim por um caminho por justiça, por liberdade ou por ajuda.
Transformar a paisagem de seu país em algo interior, impalpável e, ao mesmo tempo, tão vivo e perceptível, é um dos aspectos mais interessantes da obra de Rulfo. O universal de sua obra se encontra justamente ali; todo homem faz aquela viagem, todo mundo com seu deserto, sua planície devastada. Assim que quando vi o curta “Cães”, de Moacir Gramacho e Kibe Adler, inspirado no conto “No oye ladrar los perros”, senti-me tanto aqui, no sertão de Graciliano, quanto lá, terra mexicana que Rulfo me ensinou a chegar escutando vozes, gritos, latidos e murmúrios.

publicado no A tarde 15/05/2010

3 comentários:

  1. Hummm... México! Cada dia melhor!

    ResponderExcluir
  2. Sí, "O caminho de Juan Rulfo é longo." Hagamos un corto del cuento Luvina! Qué dices? http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/rulfo/luvina.htm

    ResponderExcluir
  3. texto muy interesante.

    ResponderExcluir