sábado, 8 de maio de 2010

Jogos, seqüestros e memória no romance de William Kennedy




O romance “O grande jogo de Billy Phelan” é um desses achados literários que nos faz, de algum modo, sortudos e marcados tal e qual um grande jogador de pôquer. O livro faz parte da trilogia conhecida como o “ciclo de Albany”, do escritor americano William Kennedy. Albany, cenário da trilogia, é uma cidade do Estado de New York de onde o autor é originário.
Usando muito bem os elementos de um romance Noir, Kennedy explora o ambiente obscuro, sinistro da pós Depressão norte-americana, mas vai além dos aspectos relativos ao gênero. A narrativa foi escrita em 1978 e é ambientada no passado, aliás, passados, já que várias narrativas surgem de épocas distintas para conferir ao protagonista um lugar de destaque nessa saga familiar.
Billy Phelan é o jogador espetacular, “sortudo” e honesto, dividido entre o mundo underground dos cassinos, botecos, prostíbulos, crimes, e o cenário familiar. Um jovem carismático, querido, que se torna uma espécie de mito quando vence uma partida de boliche com 299 pontos, tendo deixado apenas 1 ponto se perder.
Dessa noite emblemática Billy não mais escapa, e acaba sendo envolvido por uma das famílias mais poderosas da cidade num seqüestro que o deixa dividido entre sua honestidade tão admirada por todos- bandidos e poderosos- e a traição a um amigo provavelmente envolvido no crime. Preferindo ser leal aos seus princípios, vai ser alijado da convivência com amigos, dos bares, de todos os locais que freqüentava, como punição por ter enfrentado o poder dos McCall, família que controla política e financeiramente a cidade.
O romance traz intrigas e paixões envolvendo famílias: poderosas, operárias, católicas ou judias. Aliás, a família para William Kennedy é concebida como o modo de vida que vincula estreitamente os valores morais com o indivíduo. É um núcleo social forte, que se enaltece como uma necessidade mais do que um dever.
Assim, os Phelan – família de Billy - os Daugherty – família do jornalista Martin (que se responsabiliza por “interpretar” Billy em sua própria peregrinação pela cidade) - são membros de uma comunidade à qual também pertence o autor: a proximidade o envolve – e a nós também – e o leva a comungar com um ambiente saturado de lembranças que sustentam cada passo, cada ato. Fachadas, ruas, móveis, gestos, tudo ilumina a história: em Albany não há espaço para o esquecimento. Todos somos levados a desenterrar o passado do lugar.
Billy, o grande jogador, carrega em seu íntimo a falta do pai que se jogou no mundo e que traz dois grandes pecados: matou com uma pedra um operário que furou uma greve e, por acidente, deixou cair seu filho bebê, que morreu instantaneamente. Desse último “crime”, Billy nunca soube e amarga o peso de ter sido abandonado, aparentemente sem razão, pelo pai.
Mas o pai de Billy volta, depois de 22 anos, e encara o filho desde seu lugar de fracassado, de morto-vivo, de miserável, e aviva outra vez mais o passado da cidade, que não é só de Billy, mas de todos os moradores. Francis, o pai de Billy, também pertence à cidade e seus segredos. Compartilhando da tradição européia da construção de sagas, as quais são pouco exploradas na América Latina, Kennedy, depois de William Faulkner, ergue-se como um mestre nas sagas familiares e consegue deslocar o pessimismo pegando uma tradição profundamente humana, sem desconhecer a cotidianidade do mito, e levando-a ao trânsito da universalidade. É tudo história de família.
As dívidas de jogo e de bebida são metáforas, o que está em jogo são as dívidas da alma. As relações entre pai e filho são o esteio das dúvidas, dos mistérios, das traições. Há sacrifícios e cartas na manga, e não há como não se emocionar diante da verdade: as nossas fraquezas são humanas e onde há dor, certamente há amor e necessidade de perdão...
Para o leitor, então, descobrir que Martin se apaixonou pela amante do pai, que o pai de Billy causou a morte de seu filho, que outro pai manda matar quem se coloca na frente do seu rapaz, é apenas descobrir uma porção de si mesmo no expiar de qualquer passado. O que tem de mais encantador aí é que tudo é um grande jogo de William Kennedy com o leitor. Um jogo denso - onde herói e anti-herói equivalem ao mesmo - mas um jogo limpo.

O grande jogo de Billy Phelan/ Cosac Naify/ William Kennedy/ trad. Sergio Flaksman/344 p./ 55 reais.

Um comentário:

  1. Mas você adivinha bem: morria de vontade de ler Kennedy desde que Jô me falou dele! Legal a resenha! me escreva quando chegar, ok? muitos beijos!
    Juliana

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