quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Literatura: um presente natalino cool






Publicado no jornal A tarde, caderno 2+, em 18/12/2010

Milena Britto – professora do Instituto de Letras da Ufba

No tempo das intensas trocas visuais e sonoras – muito bem-vindas também, à medida e com critério –, a palavra tem se tornado um objeto cada vez mais especial. O livro é um presente cool, da onda, do tempo, bem mais interessante do que a demodé agenda, o cartãozinho caro, a bugiganga que fica esquecida nas gavetas da casa ou os dez chaveiros para duas chaves.
O livro – universal, unissex, “unicolor” em sua condição primeira - é uma canastra com múltiplos sentimentos a serem descobertos: surpresa, dor, amor, saudade, poesia, ira, paixão, desconfiança, esperança. É o cinema mudo – e o falado – é a imagem reconfigurada, a música de ritmo alucinante, o homem reinventado.
Para não se dizer que livros são delírios solitários, eles são também “comunidades”, coletivam, compartilham, atuam, conjugam ideologias, suspeitas e saberes.
Os livros são as ditaduras e as guerras denunciadas sob ângulos e sotaques distintos dos oficiais; os sexos prazenteiros e os estéreis; as luzes de todas as cidades. O livro tinha mesmo de voltar a ser cool, passada a onda de previsões ardilosas sobre a sua extinção diante das tecnologias e do império do visual. Que nada: o livro é um fetiche do homem, vicia pelo cheiro, pelo tato, pela visão. O livro nos encantou e tem-nos aqui, diante dele como loucos, ávidos, tensos, nervosos, felizes.
Livro é presente certo. E para todos os bolsos e gostos há opção. Trago as minhas dicas, para começar, mas aconselho que ao invés de bater perna pelas mil lojas das dezenas de shoppings da cidade, o leitor se dirija a uma livraria, um sebo, uma loja virtual e se inspire com as possibilidades infinitas de se encontrar “o livro”.
“Clarice,” a biografia do Benjamin Moser, é um livro para todos; é útil para quem estuda literatura e leitura agradável para os que apenas gostam de ler; os leitores de Clarice farão suas leituras conforme queiram e as críticas são pertinentes também. É um livro bonito, desejável, informa, diverte, emociona.
“Meu último suspiro, biografia de Luis Buñuel” é para os que gostam do cinema e da palavra, livro bacana pelo conteúdo, pelas imagens, pela história indireta do cinema.É emocionante ler sobre a vida intensa do diretor espanhol e ver o brilho de sua arte, a sensibilidade humana, a astuta e afinada observação política do mundo.
Para os que se encantam com poesia, há livros ótimos, desde a poesia rebuscada e com elementos de erudição poética como “As horas de Katharina”, de Bruno Tolentino, passando por “Sob o céu de Samarcanda”, de Ruy Espinheira Filho, aos poetas mais jovens, urbanos ou “marginais” como Kátia Borges e o seu “Ticket Zen”, Karina Rabinovitz e o livro “quase” instalação poética “Livro do quase invisível”, a poesia do “movimento” de Zinho Trindade- o neto de Solano Trindade- com seu “Tarja preta”; a de Marcos Vinícius no livro “3 vestidos e seu corpo nu” – também recomendo o livo de contos do autor “Eros resoluto" - e a de Fabrício Corsaletti em “Esquimó”.”
Além de “2666”, obra muito festejada em 2010, “Estrela Distante” de Roberto Bolaño é um romance interessante, prende o leitor na história cruzada e curiosa de um “poeta”suspeito que esconde sua identidade e se revela um aviador do exército, e ainda mostra a violência e o jogo perverso da ditadura chilena. Assim também, com mistério e poesia, é “Essa mulher e outros contos”, de Rodolfo Walsh, autor argentino importante, jornalista, contista, romancista, conhecido também por ter ‘desaparecido’ depois de denunciar ao mundo os crimes cometidos pela ditadura de seu país.
O romance “Ribamar”, de José Castello, é uma ótima opção para os que se aventuram por romances difíceis e densos; o novíssimo de Agualusa “Milagrário Pessoal” é ótimo para conhecer a Literatura angolana e para deleitar-se com a linguagem rica, as referências culturais angolanas, brasileiras e portuguesas, o ritmo intenso; “A rainha do Cine Roma”, de Alejandro Reyes, é imperdível: as crianças de rua de nossa cidade vivendo uma história fascinante e bem contemporânea, de dor e esperança; uma obra impressionante pelo cruzamento de histórias fortes, pelo registro lingüístico da rica oralidade baiana, pela denúncia social e beleza da literatura.
“Notas mínimas” de Katherine Funke, livro de mini-contos bom, barato, despretensioso, contemporâneo e bem urbano, com imagens belas, ritmo certo, tamanho certo. “A segunda sombra”, de Carlos Barbosa, é outro excelente para todas as idades, dos jovens que se reconhecem pela escrita curta e rápida aos que veem a literatura como parte de um tempo, de uma época. É interessante os mini-contos de narrativa precisa, com linguagem dinâmica e ritmada; a poesia entremeando cada palavra.
Terminaria com a dica do livro de fotografias, “Frida Kahlo, suas fotos.” Quem não gostaria de tê-lo em sua estante, sua mesa da sala, seu escritório? Seja cool: dê livros de presente. Os preços dos livros citados aqui vão de quinze reais a cento e trinta. O livro é para todos.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Cartas, fotografias e segredos: os misteriosos caminhos da memória




Publicado no jornal A tarde - caderno 2+ em 11/12/2010

Há dias em que não há mais nenhuma história dentro dele, quando ele tem a sensação de que não pode mais agüentar.

Em seu quarto romance, Siri Hustvedt, escritora americana descendente de imigrantes noruegueses, calcula com maestria as doses de pós-modernidade e modernidade a serem colocadas num romance.Desilusões de um americano é um livro denso e provocativo, aclamado pela crítica como um dos melhores da literatura norte-americana contemporânea. Um romance para ser encarado com a mente e o coração, que deixa o leitor intelectualmente exausto – no bom sentido.
A história sobre a experiência do imigrante e os fantasmas que assombram as famílias de uma geração para outra pareceria simples. Mas não é. O narrador, o psiquiatra Erik, vai, juntamente com a irmã Inga, incursionar-se por caminhos do passado para descobrir a parcela de verdade que, misteriosamente, ficou de fora de suas vidas, quando eles achavam que tudo conheciam de seu pai, de suas famílias, deles mesmos.
Vale dizer que esse não é um romance para se ler de forma passiva. A cada dose de mistério, o leitor é fisgado para um redemoinho de emoções, podendo acreditar que sua própria vida é parte daquelas lacunas todas, pois sua mente vai para lugares pantanosos e sentimentalmente perigosos. É um romance que conjuga autobiografia e ficção.
Erik Davidsen e sua irmã encontram uma carta inquietante de uma mulher desconhecida entre os papéis de seu pai morto. Eles passam a acreditar que o pai está envolvido em uma morte misteriosa. A partir dessa carta, Erik e Inga começam a descobrir os segredos da família Davidsen, no ano seguinte ao funeral de seu pai.
Os irmãos, após o luto, retornam de Minnesota para New York e continuam a perseguir o mistério por trás da carta. Enquanto Erik luta contra a vulnerabilidade emocional de seus pacientes psiquiátricos, e seu fascínio com os novos inquilinos em seu edifício ameaça esmagá-lo, Inga é confrontada por uma jornalista hostil que parece saber um segredo ligado ao seu falecido marido, um romancista famoso.
Como cada novo mistério se desdobra em outros e se liga com o presente, Erik começa a habitar a história do seu pai emocionalmente e a vislumbrar como a sua infância pobre, a Depressão e a guerra influenciam no relacionamento com seus filhos. Enquanto isso, Inga tem de enfrentar a realidade da vida dupla do marido.
A prosa de Siri Hustvedt revela as mágoas escondidas de uma família através de um mosaico de segredos e histórias que refletem a natureza fragmentada da própria identidade do indivíduo, chegando a esse lugar da literatura pós-moderna que, ao invés de propor lugares fixos, desmantela aquilo que supostamente é conhecido.
As descrições de Hustvedt, que também é mulher do escritor Paul Auster, tem uma elegância literária ímpar e revelam a experiência dos imigrantes e a paisagem de Minnesota a partir da herança e do olhar escandinavos, enquanto o seu relato da vida de um psicanalista de Brooklyn adquire o ritmo e a vastidão de possibilidades tipicamente novaiorquinos.
Siri Hustvedt mistura sem remorsos as paixões gritantes com a fé silenciosa em personagens densas intelectualmente, que entendem suas vidas tanto através da leitura de grande envergadura quanto de uma conversa animada. Ela prova ser uma escritora hábil, capaz de tecer idéias complexas em um enredo intrigante e cheio de ambiguidades.
Desilusões... é, mais do que um romance sobre os mistérios da mente e os segredos de família, um romance sobre pais e filhos; sobre barulho e surdez, cegueira e reconhecimento; sobre a dor de falar e a dor de manter o silêncio e sobre as ambiguidades da memória. Um romance para todos os que encaram a leitura como um caminho de descobertas sobre si e sobre a condição humana.


Desilusões de um americano/trad. Rubens Figueiredo/Cia das letras/ 368p./R$49

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Quarta é dia de Sarau Bem Black

Sarau Bem Black
Sankofa African Bar

Quarta feira - dia 08 de dezembro
19h:30min - concentração
20h - Poesia... Muita Poesia!

Com Nelson Maca, Iara Nascimento, Lázaro Erê, Luiza Gata
Lucinha Black Power, Robson Véio, Rone Dundum e Amigos

Dj Joe toca "RZO" (Rap)

Participação
MC Freeza (oquadro/ Ilhéus)

Microfone aberto aos poetas da plateia!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

“Vergonha”, de Salman Rushdie: um conto de fadas sombrio e violento


Publicado no jornal A tarde em 04/12/2010

“Vergonha, caro leitor, não é propriedade exclusiva do Oriente”.

O autor de “Versos Satânicos”, ameaçado de morte por suas supostas blasfêmias contra o islamismo, tem marcado o Ocidente - tanto quanto o Oriente - com sua escrita vinculada às questões delicadas do mundo muçulmano, dos encontros coloniais e pós-coloniais violentos e complexos.
Essa escrita não apenas em seu conteúdo é dissidente de um olhar ajustado e pacifista, mas, sobretudo em sua forma é uma construção rebuscada, fantástica, com uma porosidade que permite vislumbrar o ritmo fascinante do Oriente ao mesmo tempo em que revela diálogos com a tradição e escrita ocidentais.
Em “Vergonha”, Salman Rushdie constrói uma espécie de conto de fadas que, aos poucos, vai se transformando em um emaranhado barroco violento e perverso que denuncia a situação oprimida de uma nação. A “vergonha” é o tema da saga que traz a disputa de poder regida pelo encontro catártico e cruel de duas situações “morais”: a vergonha e a falta de vergonha.
As personagens são construídas e reveladas a partir de detalhes culturais do mundo oriental, localizadas num lugar intermediário entre as fantásticas narrativas e a realidade de quem vive sob um discurso perverso de poder.
O anti-herói Omar Khayyam é um médico obeso, sem vergonha alguma, fruto de uma origem misteriosa e quase surreal: filho de “três mães” -um ardil artifício de três irmãs orfãs para não se revelar qual delas foi o motivo da desonra - foi criado até os 12 anos numa espécie de castelo, isolado do convívio com qualquer outra criança e torna-se uma personagem ambígua e tensa.
Ao hipnotizar as mulheres para seduzi-las, vai protagonizar essa narrativa violenta e misteriosa. O seu encontro com a frágil Sufiya Zinobia, oposta em caráter - é a depositária do ressentimento desmedido dos pais e encarna a vergonha em estado puro - vai detonar uma luta violenta e fascinante, regida pelas tensões do mundo oriental oprimido pela tradição, pela religião, pelos governos totalitários e pelos bons costumes.
O romance é uma metáfora, uma cosmovisão do mundo paquistanês. O narrador se coloca como personagem e vai construindo uma cumplicidade com o leitor à medida que vai revelando, numa literatura rica e intrigante, como funcionam os mecanismos de poder em uma cultura marcada por valores “fundamentalistas”.
“Vergonha” tem uma escrita quase cortazariana, mas carregada de simbolismo oriental, barroco, com ritmo vertiginoso.
É um romance de digestão lenta, para refletir e sentir; separar um nível narrativo mais ou menos frenético da ira pelos sonhos partidos, pelo abuso, pelo crime, pelo machismo, pela violência e a tortura; sobretudo, da dor profunda pelas personagens que Rushdie traz, numa compaixão que o escritor - e o leitor junto a ele – sente ante suas criaturas: “Os débeis, os anônimos, os derrotados deixam poucas marcas: modelos de cultivo, lendas populares, cântaros quebrados, túmulos funerários, a lembrança descolorida da beleza de sua juventude.”

Vergonha/ Cia das Letras/Trad. José Rubens Siqueira/376 p $ 58,00

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Agudas histórias sob as páginas obscuras da ditadura argentina

Publicado no jornal A tarde em 27/11/2010




Tento calcular, adiciono mulheres nuas e homens mortos, mas a conta não fecha, não fecha, não fecha... Com um movimento muscular volto a ficar sóbrio, como um cachorro sacudindo a á
gua.

A literatura latinoamericana é um arquivo em ebulição das marcas pesadas das ditaduras do nosso continente e, ao contrário dos demais desse período: um arquivo aberto. O paradoxal silêncio acerca de corpos desaparecidos e torturados é gritado nas páginas das obras de grandes escritores como o chileno Roberto Bolaño e o argentino Rodolfo Walsh, em cujas páginas a suavidade das palavras se mescla à violência assustadora.
Sendo primeiramente leitora dos argentinos Borges, Cortázar e Juan José Saer, quando cheguei a Walsh fui surpreendida pela combinação de forças presente em sua obra: uma literatura que aborda assuntos políticos e de ordem ética com cuidado profundo, tratando de não banalizar pelo excesso ou pela falta, mas imprimindo essa marca ao seu texto; uma narrativa precisa, com a sutileza da escritura concisa e a riqueza polifônica de elementos literários; uma escrita de emaranhados que condensam ficção e biografia.
O livro Essa mulher e outros contos, lançado agora em português, foi escrito entre os anos de 1960 e 1970 sob o peso soturno da ditadura argentina e traz o que é considerado o melhor conto argentino do século XX. O conto Essa mulher é uma verdadeira aula de literatura e de história dos horrores políticos e das possibilidades da palavra, que pinta, revela, esconde, insinua, mostra as armadilhas dos discursos históricos dos regimes. É também um terrível caso de coincidência entre vida e literatura. Um corpo de mulher que jamais apareceu, que surge – nu- apenas no vão misterioso entre o silêncio e as palavras ambíguas de frases incompletas, numa conversa entre um general e um jornalista, é o tema do conto.
A narrativa nunca passa dos minutos de uma conversa tensa, mistura de confissão e denúncia. Um jogo maquiavélico que confunde o leitor sobre quem é o culpado de tanto horror. O autor consegue evitar maniqueísmos baratos, compõe o ardor psicológico de quem se consome entre a participação violenta nas torturas e perversidades do regime e a culpa inexpurgável, envolta em terror e desespero.
Entre as ambíguas revelações do general e a curiosidade cínica do jornalista, as páginas dessa história vão sendo erguidas com elipses, metáforas, segredos do homem e do sistema de eliminação de seres humanos por razões políticas.
Quando penso na vida de Rodolfo, desaparecido ele próprio nos vãos da ditadura por ser um jornalista,escritor – e militante político - que defendia a liberdade através da arma “suave” de palavras, denunciando a condição dos argentinos sob aquele horror, penso também no componente arriscado, inexplicado e inexplicável, que os escritores podem ter de prever suas próprias tragédias, escrever seus próprios destinos: assim como no conto Essa mulher, o seu corpo jamais apareceu.
O jornalista ficou conhecido depois de haver desaparecido, logo após enviar ao mundo uma carta aberta denunciando os crimes do governo ditatorial argentino, e sua obra repercute para além do ativismo político: Piglia e muitos outros críticos o tem lido como um escritor denso, com escrita rebuscada e magistral literariamente.
Em sua obra, a presença dos temas políticos só vem comprovar o seu talento: mesmo com todos os perigos, ele consegue ultrapassar a militância e deixar em sua literatura as histórias ritmadas,universalmente humanas, de sentimentos trabalhados, personagens psicologicamente complexos – como Maurício, personagem do conto “Fotos” – uma figura apaixonante, ambígua, mistura de malandro e rebelde sem causa, que acaba vítima misteriosa de si - ou de outros - por ser dissidente da estrutura coronelista e ter usado a arte da fotografia para “olhar” o mundo obscuro no qual vivia.
O livro traz esses e outros contos cujas temáticas circulam entre os valores éticos, os comportamentos apaixonados, as culpas, a obscuridade da vida sob sistemas políticos e jogos de interesse endurecidos por podres poderes. Essa palavra – nua – traz-nos os corpos desaparecidos e Walsh pode dar-nos notícias de sua respiração acelerada, roubada pela história da ditadura que denunciava e combatia.

Essa mulher e outros contos/ TRad. Sergio Molina e Rubia Goldoni/256p./39,00