domingo, 12 de dezembro de 2010

Cartas, fotografias e segredos: os misteriosos caminhos da memória




Publicado no jornal A tarde - caderno 2+ em 11/12/2010

Há dias em que não há mais nenhuma história dentro dele, quando ele tem a sensação de que não pode mais agüentar.

Em seu quarto romance, Siri Hustvedt, escritora americana descendente de imigrantes noruegueses, calcula com maestria as doses de pós-modernidade e modernidade a serem colocadas num romance.Desilusões de um americano é um livro denso e provocativo, aclamado pela crítica como um dos melhores da literatura norte-americana contemporânea. Um romance para ser encarado com a mente e o coração, que deixa o leitor intelectualmente exausto – no bom sentido.
A história sobre a experiência do imigrante e os fantasmas que assombram as famílias de uma geração para outra pareceria simples. Mas não é. O narrador, o psiquiatra Erik, vai, juntamente com a irmã Inga, incursionar-se por caminhos do passado para descobrir a parcela de verdade que, misteriosamente, ficou de fora de suas vidas, quando eles achavam que tudo conheciam de seu pai, de suas famílias, deles mesmos.
Vale dizer que esse não é um romance para se ler de forma passiva. A cada dose de mistério, o leitor é fisgado para um redemoinho de emoções, podendo acreditar que sua própria vida é parte daquelas lacunas todas, pois sua mente vai para lugares pantanosos e sentimentalmente perigosos. É um romance que conjuga autobiografia e ficção.
Erik Davidsen e sua irmã encontram uma carta inquietante de uma mulher desconhecida entre os papéis de seu pai morto. Eles passam a acreditar que o pai está envolvido em uma morte misteriosa. A partir dessa carta, Erik e Inga começam a descobrir os segredos da família Davidsen, no ano seguinte ao funeral de seu pai.
Os irmãos, após o luto, retornam de Minnesota para New York e continuam a perseguir o mistério por trás da carta. Enquanto Erik luta contra a vulnerabilidade emocional de seus pacientes psiquiátricos, e seu fascínio com os novos inquilinos em seu edifício ameaça esmagá-lo, Inga é confrontada por uma jornalista hostil que parece saber um segredo ligado ao seu falecido marido, um romancista famoso.
Como cada novo mistério se desdobra em outros e se liga com o presente, Erik começa a habitar a história do seu pai emocionalmente e a vislumbrar como a sua infância pobre, a Depressão e a guerra influenciam no relacionamento com seus filhos. Enquanto isso, Inga tem de enfrentar a realidade da vida dupla do marido.
A prosa de Siri Hustvedt revela as mágoas escondidas de uma família através de um mosaico de segredos e histórias que refletem a natureza fragmentada da própria identidade do indivíduo, chegando a esse lugar da literatura pós-moderna que, ao invés de propor lugares fixos, desmantela aquilo que supostamente é conhecido.
As descrições de Hustvedt, que também é mulher do escritor Paul Auster, tem uma elegância literária ímpar e revelam a experiência dos imigrantes e a paisagem de Minnesota a partir da herança e do olhar escandinavos, enquanto o seu relato da vida de um psicanalista de Brooklyn adquire o ritmo e a vastidão de possibilidades tipicamente novaiorquinos.
Siri Hustvedt mistura sem remorsos as paixões gritantes com a fé silenciosa em personagens densas intelectualmente, que entendem suas vidas tanto através da leitura de grande envergadura quanto de uma conversa animada. Ela prova ser uma escritora hábil, capaz de tecer idéias complexas em um enredo intrigante e cheio de ambiguidades.
Desilusões... é, mais do que um romance sobre os mistérios da mente e os segredos de família, um romance sobre pais e filhos; sobre barulho e surdez, cegueira e reconhecimento; sobre a dor de falar e a dor de manter o silêncio e sobre as ambiguidades da memória. Um romance para todos os que encaram a leitura como um caminho de descobertas sobre si e sobre a condição humana.


Desilusões de um americano/trad. Rubens Figueiredo/Cia das letras/ 368p./R$49

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