segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

“Vergonha”, de Salman Rushdie: um conto de fadas sombrio e violento


Publicado no jornal A tarde em 04/12/2010

“Vergonha, caro leitor, não é propriedade exclusiva do Oriente”.

O autor de “Versos Satânicos”, ameaçado de morte por suas supostas blasfêmias contra o islamismo, tem marcado o Ocidente - tanto quanto o Oriente - com sua escrita vinculada às questões delicadas do mundo muçulmano, dos encontros coloniais e pós-coloniais violentos e complexos.
Essa escrita não apenas em seu conteúdo é dissidente de um olhar ajustado e pacifista, mas, sobretudo em sua forma é uma construção rebuscada, fantástica, com uma porosidade que permite vislumbrar o ritmo fascinante do Oriente ao mesmo tempo em que revela diálogos com a tradição e escrita ocidentais.
Em “Vergonha”, Salman Rushdie constrói uma espécie de conto de fadas que, aos poucos, vai se transformando em um emaranhado barroco violento e perverso que denuncia a situação oprimida de uma nação. A “vergonha” é o tema da saga que traz a disputa de poder regida pelo encontro catártico e cruel de duas situações “morais”: a vergonha e a falta de vergonha.
As personagens são construídas e reveladas a partir de detalhes culturais do mundo oriental, localizadas num lugar intermediário entre as fantásticas narrativas e a realidade de quem vive sob um discurso perverso de poder.
O anti-herói Omar Khayyam é um médico obeso, sem vergonha alguma, fruto de uma origem misteriosa e quase surreal: filho de “três mães” -um ardil artifício de três irmãs orfãs para não se revelar qual delas foi o motivo da desonra - foi criado até os 12 anos numa espécie de castelo, isolado do convívio com qualquer outra criança e torna-se uma personagem ambígua e tensa.
Ao hipnotizar as mulheres para seduzi-las, vai protagonizar essa narrativa violenta e misteriosa. O seu encontro com a frágil Sufiya Zinobia, oposta em caráter - é a depositária do ressentimento desmedido dos pais e encarna a vergonha em estado puro - vai detonar uma luta violenta e fascinante, regida pelas tensões do mundo oriental oprimido pela tradição, pela religião, pelos governos totalitários e pelos bons costumes.
O romance é uma metáfora, uma cosmovisão do mundo paquistanês. O narrador se coloca como personagem e vai construindo uma cumplicidade com o leitor à medida que vai revelando, numa literatura rica e intrigante, como funcionam os mecanismos de poder em uma cultura marcada por valores “fundamentalistas”.
“Vergonha” tem uma escrita quase cortazariana, mas carregada de simbolismo oriental, barroco, com ritmo vertiginoso.
É um romance de digestão lenta, para refletir e sentir; separar um nível narrativo mais ou menos frenético da ira pelos sonhos partidos, pelo abuso, pelo crime, pelo machismo, pela violência e a tortura; sobretudo, da dor profunda pelas personagens que Rushdie traz, numa compaixão que o escritor - e o leitor junto a ele – sente ante suas criaturas: “Os débeis, os anônimos, os derrotados deixam poucas marcas: modelos de cultivo, lendas populares, cântaros quebrados, túmulos funerários, a lembrança descolorida da beleza de sua juventude.”

Vergonha/ Cia das Letras/Trad. José Rubens Siqueira/376 p $ 58,00

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