quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Agudas histórias sob as páginas obscuras da ditadura argentina

Publicado no jornal A tarde em 27/11/2010




Tento calcular, adiciono mulheres nuas e homens mortos, mas a conta não fecha, não fecha, não fecha... Com um movimento muscular volto a ficar sóbrio, como um cachorro sacudindo a á
gua.

A literatura latinoamericana é um arquivo em ebulição das marcas pesadas das ditaduras do nosso continente e, ao contrário dos demais desse período: um arquivo aberto. O paradoxal silêncio acerca de corpos desaparecidos e torturados é gritado nas páginas das obras de grandes escritores como o chileno Roberto Bolaño e o argentino Rodolfo Walsh, em cujas páginas a suavidade das palavras se mescla à violência assustadora.
Sendo primeiramente leitora dos argentinos Borges, Cortázar e Juan José Saer, quando cheguei a Walsh fui surpreendida pela combinação de forças presente em sua obra: uma literatura que aborda assuntos políticos e de ordem ética com cuidado profundo, tratando de não banalizar pelo excesso ou pela falta, mas imprimindo essa marca ao seu texto; uma narrativa precisa, com a sutileza da escritura concisa e a riqueza polifônica de elementos literários; uma escrita de emaranhados que condensam ficção e biografia.
O livro Essa mulher e outros contos, lançado agora em português, foi escrito entre os anos de 1960 e 1970 sob o peso soturno da ditadura argentina e traz o que é considerado o melhor conto argentino do século XX. O conto Essa mulher é uma verdadeira aula de literatura e de história dos horrores políticos e das possibilidades da palavra, que pinta, revela, esconde, insinua, mostra as armadilhas dos discursos históricos dos regimes. É também um terrível caso de coincidência entre vida e literatura. Um corpo de mulher que jamais apareceu, que surge – nu- apenas no vão misterioso entre o silêncio e as palavras ambíguas de frases incompletas, numa conversa entre um general e um jornalista, é o tema do conto.
A narrativa nunca passa dos minutos de uma conversa tensa, mistura de confissão e denúncia. Um jogo maquiavélico que confunde o leitor sobre quem é o culpado de tanto horror. O autor consegue evitar maniqueísmos baratos, compõe o ardor psicológico de quem se consome entre a participação violenta nas torturas e perversidades do regime e a culpa inexpurgável, envolta em terror e desespero.
Entre as ambíguas revelações do general e a curiosidade cínica do jornalista, as páginas dessa história vão sendo erguidas com elipses, metáforas, segredos do homem e do sistema de eliminação de seres humanos por razões políticas.
Quando penso na vida de Rodolfo, desaparecido ele próprio nos vãos da ditadura por ser um jornalista,escritor – e militante político - que defendia a liberdade através da arma “suave” de palavras, denunciando a condição dos argentinos sob aquele horror, penso também no componente arriscado, inexplicado e inexplicável, que os escritores podem ter de prever suas próprias tragédias, escrever seus próprios destinos: assim como no conto Essa mulher, o seu corpo jamais apareceu.
O jornalista ficou conhecido depois de haver desaparecido, logo após enviar ao mundo uma carta aberta denunciando os crimes do governo ditatorial argentino, e sua obra repercute para além do ativismo político: Piglia e muitos outros críticos o tem lido como um escritor denso, com escrita rebuscada e magistral literariamente.
Em sua obra, a presença dos temas políticos só vem comprovar o seu talento: mesmo com todos os perigos, ele consegue ultrapassar a militância e deixar em sua literatura as histórias ritmadas,universalmente humanas, de sentimentos trabalhados, personagens psicologicamente complexos – como Maurício, personagem do conto “Fotos” – uma figura apaixonante, ambígua, mistura de malandro e rebelde sem causa, que acaba vítima misteriosa de si - ou de outros - por ser dissidente da estrutura coronelista e ter usado a arte da fotografia para “olhar” o mundo obscuro no qual vivia.
O livro traz esses e outros contos cujas temáticas circulam entre os valores éticos, os comportamentos apaixonados, as culpas, a obscuridade da vida sob sistemas políticos e jogos de interesse endurecidos por podres poderes. Essa palavra – nua – traz-nos os corpos desaparecidos e Walsh pode dar-nos notícias de sua respiração acelerada, roubada pela história da ditadura que denunciava e combatia.

Essa mulher e outros contos/ TRad. Sergio Molina e Rubia Goldoni/256p./39,00

2 comentários:

  1. É só tempo de meio silêncio... mas logo volto e atualizo o blog =)

    Obrigada pela visitinha!
    Beijão Milena,

    Jenifer

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