segunda-feira, 6 de junho de 2011

De verbários, milagrários e desejos: a língua dos pássaros



Publicado no A tarde em 04/06/2011

O angolano José Eduardo Agualusa encarou o maior segredo de todos nós; os sonhos, os desejos, os perigos, os mistérios, as surpresas, as delícias, o terror, as guerras, as histórias, a memória, a beleza: a língua.
O seu novo romance “Milagrário Pessoal” assume a missão de decifrar os mistérios da língua portuguesa a partir de uma jovem lingüista, que investiga uma lista de novos neologismos publicados em artigos de jornal, e um professor, velho anarquista angolano “ligado ao absurdo”, com uma vida emaranhada em livros, guerras, poetas, segredos e lendas.
O romance passeia por mitos, pela história, por documentos antigos. Uma língua de pássaros aparece como chave para o mergulho na aventura que se espalha por Angola, Brasil e Portugal. O narrador é um erudito e bem humorado professor, personagem que parece representar politicamente uma espécie de guardião de segredos fundadores. Esse narrador, do passado, dos segredos de livros e bibliotecas, tem uma ligação especial com o presente através de Iara - nome nada casual da jovem que pesquisa palavras ainda não dicionarizadas.
Além de levar o nome da mulher-sereia, híbrida como um neologismo, Iara revela-se como a outra ponta de uma história quase impossível de tão enredada. Computadores, programas, I-pods, toda a sorte de tecnologia e aparatos modernos entram na história para erigir uma homenagem a esse bem maior que é a palavra. E parte desse propósito é construído pelos caminhos da própria origem do romance, que é a origem da palavra, que é quase a origem do homem: a magia e o encanto de uma palavra que transforma e dá sentido ao existir. O que tem de maravilhoso, contudo, é que essa alegoria é pensada através da língua portuguesa.
Documentos antigos contêm lendas e histórias, marcas de tempo e de transformação; essas contém e estão contidas em outros livros, que abarcam outras páginas e outras lendas, e assim, como uma caixa sem fim, essa língua que contém outras vai compondo uma rede de sentido e de segredos que une três continentes. Da oralidade à escrita, entre as guerras e os mitos, falando dos seres humanos e dos míticos, as páginas de “Milagrário” vão construindo a língua de Camões, de Caetano, de Luandino Vieira, de Cruz e Souza, de Ana Paula Tavares, de Manoel de Barros, de Guimarães Rosa e de muitos poetas que emprestam seus versos para uma língua seguir roçando em outras e nos revelando como parte de um segredo grande.
Poetas e escritores de Angola, do Brasil e de Portugal compõem o texto de Agualusa, numa bela e incrivelmente bem-feita coleção de palavras. O escritor se revela um mestre ao inventar neologismos para pensar sua língua, fazendo também parte da mágica aventura de nomear coisas e sentimentos. As citações de eventos históricos que seguram o segredo estão desde a Índia até o Brasil. Lendas se misturam à história; de amor e de magia, mas também histórias de poder e de guerra. De “segredanças”.
A linguagem é cheia de surpresas não só por neologismos; o narrador usa vocábulos que talvez não existam ou que existiram algum dia, mas também revela sob outra luz ou reinventa palavras. Essas oferecem-se ao sacrifício para dar vida aos nossos sonhos e a uma memória esquecida de quando tudo começou. Lendas africanas se juntam a lendas pernambucanas; línguas tantas são essas que somos muitos mitos.
O contar simples e rico de José Eduardo encanta, deixa a ternura e as suspeitas irem longe; seduz como uma flor de raro perfume, talvez a flor do Lácio. Os mistérios são das línguas e dos povos, as histórias da colonização e das independências descortinam o poder desde o alto de uma palavra. A vida não parou, o mistério está ali para deixar-nos diante da esfinge, a nossa língua; esse enigma misterioso é nosso segredo, é nosso amor. Segredo que escapuliu da língua dos pássaros.

2 comentários:

  1. Fantástico livro de um grande escritor, que tive o prazer de conhecer numa mesa de autografos. Muito bom o seu texto, principalmente por chamar minha ateção a vários neologismos que me passaram despercebidos!
    Também escrevi sobre o livro em minha página; dá uma olhada =)

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  2. ôpa, Leonardo! Vou conferir sim, obrigada!!!

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