quinta-feira, 2 de junho de 2011

O Brasil com Lima Barreto: Brunzundangas, Tangolomango e resistência

Publicado no A tarde, 28/05/2011

Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Isaías Caminha... as personagens de Lima Barreto vão surgindo como parentes que chegam a visitar. É daí, quiçá, o sentimento de encontro feliz que se tem ao ler o livro “Lima Barreto”, de Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, poeta, escritor, um dos fundadores dos “Cadernos Negros” e do “Quilombhoje Literatura”.
Esse encontro feliz é porque Cuti, ao invés de simplesmente comentar as obras de Lima Barreto, deixa a um outro Lima a porta aberta para entrar em casa. Se o Brasil racista de outrora ignorou essa literatura rica e única, o Brasil (ainda) racista de agora a tem tratado ainda com meias-verdades. A sua obra, claramente fundamental no entendimento de um período e de um pensamento geral sobre o que seria uma nação e os conflitos ali existentes, é precursora de valores do nosso Modernismo. É isso, mas muito mais.
O livro de Cuti, modesto, pequenino, sem artifícios intelectuais, traz, justamente, as obras desse escritor a partir de seu lugar de autor negro, que sofria e que também pensava o racismo. Os fatos da vida de Lima Barreto acompanham, entremeados com observações sensíveis e críticas de Cuti, o surgimento de sua obra literária.
A constatação de Cuti é a de que Lima Barreto esteve sempre pensando e sempre atento às artimanhas e movimentos do racismo – e recuperemos da história que o racismo ali era ainda aquele configurado em projeto: de silêncio absoluto, de combate histórico, físico, social, ideológico.
O escritor que nos deixou o inesquecível e fascinante anti-herói Policarpo Quaresma, quixotesco personagem que nos maravilhou com seus projetos para a nação, concebeu uma estética própria, relutou em ser cooptado por modismos ou desaparecer ante frentes de combates desassossegados; ele foi ardiloso, sutil, irônico, mas direto: escrevia e comentava, desarmava o circo racista; evidenciava as fragilidades dos discursos, as posturas centradas na hipocrisia do pensamento ; deixava em falas de suas personagens as precisas palavras para dar àquele Brasil uma resposta, ou uma corajosa recusa a aceitar calado suas graves e hipócritas construções.
Pária? Fraco? Débil? Louco? Não. Lima Barreto era sensível, sim, mas era também forte, consciente, consistente e sabedor de seu talento com a palavra. Ele desejava ser escritor de sucesso; sabia que o pensamento e as letras eram o seu caminho e, mesmo com todas as dificuldades- não poucas sendo ele neto de escravos, pobre e preto- não cansou de buscar esse lugar. As obras foram surgindo de suas experiências, suas observações enquanto negro naquela sociedade; pensou sobre a arte, sobre a vida, sobre a sociedade de seu tempo com igual rigor. Suas crônicas, contos e romances são discutidos por Cuti com uma junção de caminhos, vamos acompanhando o contexto e entendendo a obra a partir desse lugar de sujeito, de cidadão, de filho da pátria.
Desde que “convivi” com Lima Barreto, há mais de uma década, em uma sala do Instituto de Letras, com a professora Florentina Souza, que ele tem ficado por ali. E foi daquelas aulas que saíram as desconfianças; entender esse Brasil, essa literatura não é fácil. Anos depois, reencontro Lima Barreto nesse livro de Cuti. A Literatura Brasileira tem Lima Barreto, a literatura brasileira tem negros.
O livro de Cuti traz uma leitura diferente de Lima Barreto. E a sua feitura, além de seu conteúdo, traz um certo Brasil às páginas: o Brasil de hoje, que se repensa, que quer se pluralizar. E ele próprio revela e assume a sua estratégia de escrita: “escrevi esse livro para o leitor negro”.
Que esse leitor negro seja entendido como parte da outra história: Lima Barreto conseguiu, enfim, ser o escritor que desejava, hoje, negros são leitores e temos outra história. E, assim como aquele moço do Sarau Bem Black, eu também queria abraçar o Lima Barreto. E o Cuti.
Lima Barreto/ Selo Negro/col. Retratos do Brasil Negro/127p/20,00

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