terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Vestindo cores, usando contas e discutindo Deus: a fé das crianças






“Encontrei Pedro e expliquei que todas as religiões são especiais. Que, até se a pessoa não tiver religião nenhuma, a gente tem que respeitar.”

Muito bem recebido é o livro “Minhas Contas”, de Luiz Antonio, que está sendo lançado pela Cosac Naify e foi um dos finalistas do prêmio Jabuti na categoria infantil. O livro, ilustrado pelo artista Daniel Kondo, narra a história da amizade entre Nei e Pedro, duas crianças de religiões diferentes, muito amigos, que de repente se vêem obrigados a se afastar por conta dos adultos preconceituosos.
Esse mundo que vivemos sonhando para as crianças, o mundo da diversidade e da harmonia entre os diferentes, é também o que cada vez mais se torna intolerante.Talvez um dos temas mais tensos da atualidade seja mesmo o da religião, afinal, é em nome dela que toda uma guerra se dá no Oriente Médio. Mas aqui, ao nosso lado, seja entre os edifícios ou as gameleiras, o tema também gera graves conflitos e não são poucos os que o discutem. Assim, a literatura para crianças também se mostra um espaço de representação e experimentação dessas tensões, como se pode ver em “Minhas Contas”.
Há poesia na obra de Antonio. O lúdico se une ao sério em frases sólidas e belas, sem desperdícios poéticos e sem excessos. Nei é um menino do Candomblé, que todos os dias usa as suas contas coloridas e vai brincar com seu inseparável amiguinho Pedro. Um dia, a mãe de Pedro proíbe Nei de freqüentar a sua casa e de brincar com o filho porque ele usa “coisas de macumbeiro”. A partir daí, vamos acompanhando o dilema do menino, tanto nas descrições de seus pensamentos quanto nas imagens e cores que vão dar ao leitor um retrato de suas emoções.
A linguagem verbal e não verbal se aproximam muitas vezes, complementando-se, como nas partes em que lemos os fatos ocorridos e vemos detalhes ligados à indumentária, acessórios e mitologia do candomblé, mas, em outros instantes, essas linguagens têm cada uma a sua dimensão própria e são, para mim, os momentos mais férteis, pois as imagens revelam a profundidade dos sentimentos do menino de forma quase abstrata, com cores e nuances propondo as mudanças desses sentimentos e revelando a intensidade dos mesmos. São momentos, no livro, em que a força do preconceito aparece fortemente trabalhada, emocionando-nos com as representações da depressão, dos conflitos, do medo, da dúvida e da dor de perder um amigo amado por conta de seu amor ao seus deuses. O trabalho visual mais abstrato de Daniel Kondo impressiona pela combinação de cores e traços, cada uma das técnicas deixando a sua força.
O autor estreante Luiz Antonio é um paulistano que descobriu e vivenciou aspectos ligados ao candomblé e se uniu ao artista Daniel, do Rio Grande do Sul, para deixar às crianças, e aos adultos, essa lúdica e sensível incursão por um tema delicado e carente ainda de muitas discussões, especialmente junto aos pequenos. O livro conta com uma ilustração já famosa, tendo sido escolhida para representar o Brasil num catálogo internacional, no Museu Trompo Mágico, no México.
Apesar de que, em alguns momentos, o tom pedagógico seja demasiado visível, a obra se revela digna das cabeceiras e rodas de leitura e vai somar ao leque da crescente produção para crianças que, diga-se de passagem, vem crescendo em qualidade e conta com alguns bons nomes.
Para as crianças e para nós os crescidinhos, vale a pena pensar nas palavras que a avó de Nei lhe diz: “Se Deus é um só em todas as religiões, por que as pessoas se preocupam com o jeito com que os outros amam esse Deus? Cada um ama de um jeito”.

Minhas Contas/ Luiz Antonio/ Ilustração/ Daniel Kondo/Cosac Naify/

Publicado no A tarde, caderno 2+

2 comentários:

  1. O livro é muito lindo. E extremamente importante. É envolvente, as crianças adoram e gera muitas reflexões para nós, adultos. Ótima dica, adorei.

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  2. Oi Cris,

    Que bom que você dividiu aqui sua opinião. E, sim, o livro traz um tema muito importante abordado com sensibilidade...

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