domingo, 4 de abril de 2010

Barroco Tropical



Essa Luanda com a face virada para o futuro surpreende a qualquer um. É a Luanda de 2020, de José Eduardo Agualusa, descrita em “Barroco tropical”. O livro é uma bem sucedida mistura de Gabriel Garcia Marques com um romance de mistério. E tem mais: partes do livro trazem também espécies de crônicas políticas de um pasquim, tendências esotéricas da vida moderna- todas misturadas-, os apelos em torno do fetiche de todos pelas páginas policiais, os mistérios das casas de prostituição, os bastidores da “governância”, a obscuridade dos jogos pelo poder. Tudo isso escrito e descrito com uma criativa linguagem e um estilo único. É, cativantemente, uma aventura épica urbana na qual passado e futuro se encaram numa Angola moderna e delirante.
É barroco o cruzamento das narrativas que escalpelam a nossa memória. Barroca é a linguagem e a disposição dos temas – histórias de amor, paixão e traição, assassinatos, corrupção, lendas, aliciamento, prostituição, e até poesia –, a mistura de personagens de universos completamente distintos: Rato Mickey, um ex-sapador mascarado de rosto desfigurado, Tata Ambroise, um curandeiro metido a psiquiatra, Kianda, uma cantora famosa, Mãe Mocinha, uma ialorixá baiana, Bartolomeu Falcato, escritor, e ainda uma ex-miss, um anjo de asas negras, poetas, empresários, estilistas, jornalistas, políticos.
Uma profusão de personagens que trilham, simbolica e metaforicamente, pelos corredores do poder, denunciando uma gama de violência, censura e corrupção. Os espaços são vários: Europa, Brasil, Angola. Barroquismos também vemos nas canções recuperadas das tradições locais até os hits pop de Madonna, passando pela poesia de Eucanaã Ferraz.
Agualusa logra extraordinária descrição de uma angola desvinculada de um olhar exótico ou estereotipado, sem deixar de mostrar as peculiaridades daquela cultura e ambiente. Ele deixa-nos embrenhar pelo passado e pelo “futuro” da cidade de Luanda de uma maneira ímpar: não é só o ambiente físico, mas as próprias personagens que ajudam na configuração dos espaços. Assim, um artista graffiteiro muito jovem, mudo, que pinta os muros da cidade, e uma arquiteta conhecida vão trazer consigo, metaforicamente, os espaços perdidos e os sonhados: tradição e modernidade sobrepondo-se, escondendo sonhos e tragédias. É, na situação atual, aquilo que supomos: não podemos fugir do tempo, do desenvolvimento, das mudanças, mas não há ilusão sem perdas.
“Barroco Tropical”, lançado no Brasil no ano passado pela Cia das letras, é, não há como negar, uma obra rica e com uma carga de denúncia forte, ainda que muito bem destilada na trama, sem maneirismos, obviedades ou pretensão moral e ideológica gratuita. Ali sentimos o peso dos resquícios e das marcas dos regimes ditatoriais, os vícios do poder dificultando a reconstrução do futuro-presente. É denúncia crua, conseqüência das histórias inventadas, mas justamente por seu caráter muitas vezes surreal, elidindo e ao mesmo tempo amplificando as verdades, é que ganha esse sabor especial.
A narração muda de ponto de vista, a amante e o escritor se alternam em contar o fato principal que os levam a uma cena insólita: testemunhar um corpo de mulher caindo do céu. Assim, investigando e perseguindo as pistas de um anjo de asas negras, os leitores vão ser postos numa emboscada delirante, onde desde o alto escalão do governo até dirigentes de terreiro serão parte de algo suspeito e perigoso. Ainda há a delícia de nos depararmos com os gêmeos anões, personagens absurdamente ricos e improváveis, que saem de um vão de pobreza para cenário da moda contaminado por vícios perigosos, e envolvidos em assassinatos. Os nomes deles, maravilhosos: Jacó e Esaú.
O livro passa por personagens do cotidiano brasileiro e angolano, deixa-nos rastros precisos da nossas tradições e das dele, Agualusa; faz-nos testemunhas de uma Luanda modificada, moderna, com tantos conflitos quanto qualquer outro lugar contemporâneo e urbano que sai de uma tradição enraizada, enfrentando violências simbólicas e físicas. Marcas das guerras estão lá, assim como os sinais dos novos tempos.
O autor acertou no modo de nos contar tudo o que quis contar, apenas pecou com o excesso de personagens, desnecessário a meu ver, visto que a carga simbólica e densa dos principais nos deixa muito material para percorrer e muita literatura para destrinchar. Em todo o resto, um livro excepcional que nos pega de jeito: ironia, sátira, crítica, erudição, questionamento, denúncia, pintura, imagem, poesia. Resulta que há que se ler.

“Barroco Tropical”/ José Eduardo Agualusa/ Companhia das Letras/47 reais
Publicado no A tarde.
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4 comentários:

  1. realmente!! fiquei com vontade de ler!
    beijo

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  2. Legal a resenha! Agualusa tambem
    bjo

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  3. Puxa,Silvana, eu sei que você morou lá em Luanda e agora eu estou louca para ir conhecer também... e bem-vinda da aventura pelo mangue, moça de raiz nos pés :-)

    karina: Quando puder, leia, eu sei que você vai gostar... bjs!

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  4. de Agualusa tem 'O vendedor de passado', 'As mulheres do meu pai' que vc tambem vai gostar!!! bjao

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