sábado, 31 de outubro de 2009
terça-feira, 27 de outubro de 2009
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
O Artaud de Sterling Ruby
Sterling Ruby é um artista multidisciplinar. Nascido na Alemanha, foi criado nos EUA. Vive e trabalha em Los Angeles, na Califórnia. Em seu trabalho se pode encontrar cerâmica, pintura nas mais diversas técnicas e materiais, escultura, vídeo e fotografia. Um artista que desabrocha como um dos mais importantes e versáteis da nova geração norte-americana.
sábado, 24 de outubro de 2009
Ateu, Saramago volta a confrontar Deus em seu novo livro, Caim
José Saramago é ateu. O que tem, então, a dizer um ateu sobre Deus? Como em O Evangelho segundo Jesus Cristo, no recém-lançado Caim ele envereda-se por um mordaz e irônico romance-exegese da Bíblia. Se no Evangelho Saramago concentra-se numa crítica ao cristianismo, em Caim ele estende essa crítica às raízes comuns do judaísmo, do cristianismo e do islã. Em ambos romances, a conclusão é a mesma: “Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco, salvo, afinal, que não se trate de loucura, mas de pura e simples maldade”. Mas seria impreciso dizer que o romance é apenas uma condenação de Deus. Afinal, que briga pode ter um ateu com um Deus que não acredita existir? Longe disso, o romance responde a uma pergunta muito mais relevante: Se fôssemos acreditar nas histórias da Bíblia, como seria esse Deus? A pergunta é não só pertinente, mas fundamental, na tentativa de compreender a civilização ocidental e os males dos nossos tempos, pois que nosso pensamento é inseparável da herança judaico-cristã.
Em Gênesis, no Antigo Testamento, Caim mata Abel por inveja, quando Deus se recusa a aceitar as oferendas de Caim, mas aceita as do irmão. Entretanto, na versão saramaguiana, Caim se rebela contra a culpa que lhe é dada; Deus é tão culpado quanto, diz ele, por tê-lo incitado ao crime: é o seu “autor intelectual”. É a partir da visão deste Caim rebelde, crítico, condenado à errância eterna, que vamos percorrer as mais diversas passagens do Antigo Testamento, descobrindo a cada passo um Deus arbitrário, vingativo, vaidoso e cruel.
Escrito com humor e ironia, com um domínio ímpar da língua portuguesa e mantendo o seu reconhecido estilo, o Caim de Saramago é a história da guerra entre um homem e Deus. No fundo, porém, mais do que uma sátira da Bíblia, o romance é uma crítica às interpretações que dela se tem feito e os seus efeitos na civilização ocidental. Em outras religiões, não existe a nítida separação entre o bem e o mal. Os deuses são, quando não amorais, simultaneamente bons e maus. Saramago, com afiada ironia, desvenda a falácia da representação judaico-cristã de um Deus que se supõe bom.
Ao mesmo tempo, a interpretação bíblica de Saramago é uma alegoria da realidade humana, e Deus, uma metáfora da corrupção do poder. Assim, seguindo a reflexão crítica que o autor vem fazendo sobre a realidade contemporânea em muitos dos seus romances, Caim pode ser lido como um convite a pensar esta realidade e as suas injustiças a partir de um olhar cuidadoso das nossas raízes ocidentais. O poder requer controle e obediência, castiga a insubordinação. Assim, Deus destrói Babel, pois os seus habitantes, ao desejarem chegar ao céu, desafiam a prerrogativa exclusiva de Deus. A pedido de Deus, Moisés ordena o fratricídio entre os judeus recém fugidos do Egito. O poder é vingativo e implacável, como demonstrado pelas inúmeras histórias de guerras genocidas de destruição e morte indiscriminada de homens, mulheres, crianças e velhos.
Esta releitura bíblica não é apenas uma reflexão teológica, mas uma atualíssima crítica da contemporaneidade. Não será por acaso que o lançamento de Caim coincide com as crescentes denúncias de crimes de guerra cometidos por Israel, na faixa de Gaza, no início deste ano, e com as recentes declarações do Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu de que as investigações da ONU “estimulam o terror e ameaçam a paz”. E é inevitável perceber uma ressonância entre a violência e arbitrariedade do Deus bíblico e os horrores no Meio Oriente durante a presidência de George Bush nos EUA e que continuam com o atual presidente.
Nesse mundo desvairado comandado por esse Deus “louco ou malvado”, são justamente as personagens que, na “versão oficial” são pecadoras ou malditas, as que se redimem através da rebeldia. É o caso de Caim, evidentemente, mas também de Eva, que enfrenta e questiona as arbitrariedades de Deus. E é também o de Lilith, personagem mítica (mulher-demônio, sedutora e erótica, segundo mitologias mesopotâmicas e hebraicas; a primeira mulher de Adão, anterior a Eva, segundo tradições cabalísticas) que Saramago introduz, anacronicamente, na história, reivindicando-a como exemplo de poder feminino e de liberdade sexual. Esta releitura não deixa de apresentar certos problemas, pois a personagem desenvolve-se apenas no plano do erotismo, reproduzindo, assim, estereótipos sobre a mulher que em teoria estaria Saramago tentando desafiar. Entretanto, personagens obedientes e devotos, como Abraão, Moisés e Noé, são representados como fracos, inconscientes e indignos. A fé cega e a obediência ao poder arbitrário, parece dizer Saramago, são fontes dos males da humanidade. Caim nos devolve, com humor ferino, o amargor da dúvida e a acidez da culpa.
Publicado no Jornal A tarde 24/10/2009
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Quase anônimos, talentosos e minimalistas
Eu gosto de fuçar por trabalhos de artistas de várias idades e nacionalidades, e estou tentando tirar mais proveito da internet, já que passo tanto tempo por aqui pesquisando. Vou sempre para gente pouco conhecida, os quais começarei a postar por aqui... Nisso de fuçar aqui e fuçar ali, encontrei o trabalho de Davor Svetinovik, 20 anos. Delicadíssimo, simples, minimalista em traços, cores, mas com o detalhe certo em cada desenho, o trabalho de Davor encanta. Fica-se, diante dele, tentando descobrir e preencher as emoções que parecem estar à frente dos desenhos, mas ainda a se completarem como o próprio traço que não se finda... Natural de Mrkonjic, na Bosnia, imigrou para os Estados Unidos quando tinha 10 anos. Davor é estudante e trabalha na biblioteca da Western Washington University. Seus desenhos, segundo suas próprias palavras, são fincados na tentativa de entender o que está se passando na própria vida: "Eu tento fazer sutis referências para eventos e momentos particulares, mas ao mesmo tempo, devido à natureza do modo como eu lembro coisas, muitas delas parecem exageradas de alguma forma. Então, muito de meu trabalho existe no meio do caminho entre verdade e ficção." Assumidamente a inspiração de Davor vem de Nikola Tesla e Bill Callahan. E suas ferramentas de trabalho se resumem em: nanquim, aquarela, papel, pincéis e lápis. Agucemos o olhar para esses 20 anos que nos oferece tanto e nos promete mais...
sábado, 10 de outubro de 2009
Homens, Livros e Lobos
Milena Britto
Professora no ILUFBA e no IHAC
De Freud a Herman Hess, da Roma de Rômulo e Remo à Selva de Mogli, os lobos passeiam pelos tempos dos homens abocanhando espaços grandes de seus sonhos. O Livro dos Lobos é uma reação às certezas do homem distante dos espaços primitivos e seguro de seu cotidiano, com contos narrados com uma dose de realidade que vai se dissipando conforme o leitor e o narrador se aproximam do mesmo desejo: decifrar os mistérios da escrita. Os contos, reescritos pelo autor e relançados recentemente, estão envoltos em segredos e enigmas. Escritores cegos, bibliotecários surdos e mudos, lobos que visitam mosteiros, sonhos que viram realidade, incestos e pesadelos vão cercando o leitor e colocando-o num estado de vigília, quase duvidando do que lê enquanto passa a limpo suas próprias crenças e experiências. O impasse entre o real e a fantasia é a chave encontrada pelo autor para revelar uma certa “falta” que sente o homem moderno, o que se pode observar quando se lê os contos “A caminho do Poço Verde” e “Alguém dorme nas cavernas”, nos quais o tempo se alonga e as histórias parecem que não terão fim. O mistério que envolve as histórias representa também a dificuldade com as verdades absolutas e rápidas; é a dúvida às respostas prontas e em série da sociedade mecanizada e veloz, indício captado na leitura de “Os biógrafos de Albernaz”. A violência psicológica e física, o medo, a busca e a incerteza fazem parte do jogo literário a que se propôs o autor, cujo objetivo é questionar até que ponto o homem conhece a si mesmo e até que ponto se distingue de seus desejos e medos. O abandono das personagens às suas viagens oníricas e míticas é explorado com uma infinidade de referências que vão desde a literatura contemporânea às tradições religiosas. As metáforas usadas adquirem tom de profecia, numa linguagem fluída com algo de complexo, mas sem ser hermética. Em alguns dos contos, hesitamos entre o ritmo das lendas orais, as narrativas proféticas e o ruminar das personagens-narradoras consigo mesmas. O espaço onde ocorrem as ações é um campo simbólico mais do que físico, ora representado pela natureza ora pela fantasia, com poucas exceções, como no conto “A escola da noite”, onde uma favela é cenário de uma cena de violência física e psicológica, e no conto “A terceira vez que a viúva chorou”, que acontece quase todo na enfermaria de um hospital. O conto “Um certo tom de preto” desafia o leitor com a construção de personagens ‘duplicadas’, quem sabe se por elas mesmas, pelo narrador ou pelo próprio leitor diante da natureza incivilizada e perigosa do incesto. As narrativas “misteriosas”, quase fantásticas, de Rubens Figueiredo se completam quando se descobre que algumas das histórias de lobos que estão no conto “Alguém dorme” são, de fato, inspiradas no que se conta do lobo Guará, da serra da Caraça, em Minas Gerais, onde houve um incêndio no Mosteiro que há ali, tal qual no conto, e onde a Biblioteca é, assim como na narrativa, depositária de valiosos e raros exemplares. O Poço verde é também um lugar “real” e, dessa forma, o autor nos desafia a seguir suas pistas e encontrar, quem sabe, em uma caverna, o rosto petrificado da espeleóloga Raquel ou desenterrar os manuscritos escondidos de um homem-lobo, ou ainda encontrar Diana nas águas do Poço que deseja, obsessivamente, encontrar. Se há vacilo em seguir as pistas ‘reais’ deixadas por aí, por essas e outras personagens, fica-se a “literatura” do livro. D’O Livro dos Lobos.
O Livro dos Lobos/Rubens Figueiredo/Companhia das Letras/160 páginas/30 reais
Publicado no jornal A tarde, 10/10/2009
As vidas sem muros em ruas fortificadas
Milena Britto[1]
“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.” Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem. Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna. Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.
Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 287
Preço: 13.50 euros
[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.
Publicado no jornal A tarde, 26/09/2009
Da internet à livraria: páginas vermelhas de folhetim
Milena Britto[1]
Aqui no subúrbio, quente e abafado, esquecido e ignorado, nos fundos de um mercadinho cheirando a barata, não existe desconforto maior do que o carregamento de porcos atrasar e expectativa maior do que vê-los, todos, pendurados por ganchos no frigorífico.
Edgar Wilson, Erasmo Wagner, Alandelon. Com nomes como esses, as personagens do livro “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, de Ana Paula Maia, vão esfolar vivos os que chegam desavisados. A ironia dos nomes soma-se ao humor ácido que circula nas páginas do livro. Sem filosofia, composições clássicas ou sujeitos glamorosos, os nomes ‘de batismo’ dessas criaturas convocam-nos ao centro de gravidade de uma vida urbana ou periférica sem retoques: o mundo sub para além das paredes brancas dos edifícios, das luzes e letreiros que iludem a quem queira. Ali, o lixo, a noite, os chiqueiros, as fossas, são os espaços por onde andam os personagens, não por acidente ou mero efeito de scene, mas eles próprios conformando o ambiente repudiado pelos sentidos. Quem não torce o nariz ao odor desafiador dos dejetos e dos carros de lixo? Realcemos isso com os tipos humanos que realizam as escavações, que coletam o lixo, matam porcos, ou que desentopem fossas. Todos os sentidos do leitor são invadidos na incursão naturalista e violenta da escritora por essas zonas soterradas, que imprime um traço particular às duas histórias narradas: O trabalho sujo dos outros e Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Além do pulp tarantinesco evidente, as personagens são duplamente castigadas: pela vida que levam e pelo “efeito” dessa vida sobre eles mesmos. Os seus corpos e as suas mentes estão afetados. A surdez pelo barulho da britadeira, o estado quase sonâmbulo dos que varam a noite recolhendo lixo, o espetáculo da violência canina, o surreal aparecimento de um bode, o cheiro constante e irretocável dos dejetos. Essas visões, aparições e doenças interceptam as histórias e as deixam com ruídos, manchadas e em estado de pesadelo. A representação das realidades socialmente ignoradas por boa parte do público tem efeito de bomba, tanto pelos tipos humanos com quase nenhum caráter e muito sofrimento quanto pela linguagem direta e sem subterfúgios, numa repreensão a qualquer esperançazinha de que o trabalho ‘sujo’ e o jogo de sobrevivência desse mundo esteja sob algum pacto de “dignificação”. O livro, publicado primeiramente na internet sob o rótulo de folhetim, não traz essa tão aclamada originalidade de tática ou estratégia de captar os olhares e a atenção dos leitores. No século XIX, muitos autores publicavam seus romances na forma de folhetim, em jornais, antes de publicá-los em livros. No caso de “Entre rinhas”, o amarelo das antigas páginas folhetinescas é substituído pelo vermelho vivo de um folhetim do tempo dos cybers, dos bytes e dos excessos. É justamente no vermelho que as páginas impressas reagem: se as torcermos, é puro sangue.
Título: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos
Autor: Ana Paula Maia
Editora: Record
Páginas: 160
Texto publicado no caderno 2+ do A tarde, 19/09/2009
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Mercedes Sosa (...)
Quero cantar-lhe a minha terra
E que floresça
Dentro do clima meu povo
E sua primavera
Inaugurar mil pombas de pão
E que não morram
Quero elevar-me num grito
E talvez possa
Tomar o sol da mão
Quando se afasta
Para tirar-lhe a luz e a voz
Meu povo espera
Quando teu te pares a olhar a vida
No vertice justo do tempo e a luz
Lados a grandeza do homem e seu dia
Seu caminho novo, seu canção azul
Quero brotar na espiga
Da consciência
Do homem novo que luta
Por sua manhã
E proclamar seu tempo azul de pé
Dando a cara
A rainha do cine roma, livro de Alejandro Reyes
Vidas sem muros em ruas fortificadas
“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.” Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem. Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna. Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.
Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 287
Preço: 13.50 euros
Mais Inhotim
Mais Museu: Inhontim
Esse museu, em Brumadinho, MG, é uma experiência que realmente nos faz quase parte de uma instalação. Museu e obra se confudem, espectador e plantas dividem o espaço se complementando; as obras, muito bem escolhidas, oferecem uma diversidade de olhares, sensações, provas estéticas e conceitos de arte. O repertório é suficiente, nada sobra naquele oásis encantado. Entretanto, ficam perguntas inquietantes que extrapolam a experiência, mas que igualmente merecem ser expostas: quem paga aquela conta, enorrmmeee, e como a comunidade do pequeno povoado interage com o museu?
Vik Muniz
Visitar a exposição de Vik Muniz foi uma excelente idéia. O "mau ator", expressão por ele usada para cunhar os elementos que usa para simular um desenho, uma pintura, uma escultura, de fato desempenhou muito bem o seu papel and we can ask: who is the bad actor? A imagem é o resultado e o fim para ele, o Vik. Eu, particularmente, fiquei pensando nisso do trabalho compulsivo associado a uma criatividade inquieta. Na verdade, assim como Cornell, o artista-arquivista que colecionava como formiga e fazia do óbvio cotidiano um lugar de experiência mental e de memória deslocada (mas minimamente calculada), questionando a cópia, a origem, o "recriar o mesmo para o novo", Vik quase que vulgariza as obras, as técnicas, o concreto delas e as expõe como magistralmente especial justo no resultado: a imagem... chocolate, arame, papel, lixo, açúcar, e outras coisas do nosso humilde cotidiano, viram, sim, esculturas, retratos, pinturas... mas elas, as matérias, só importam para representarem e iludirem, o que fica é pura imagem. Apaixonantes imagens. Em BH. Eu e Vik. Really liked it.