sábado, 10 de outubro de 2009

Homens, Livros e Lobos




Milena Britto

Professora  no ILUFBA e no IHAC

 

De Freud a Herman Hess, da Roma de Rômulo e Remo à Selva de Mogli, os lobos passeiam pelos tempos dos homens abocanhando espaços grandes de seus sonhos. O Livro dos Lobos é uma reação às certezas do homem distante dos espaços primitivos e seguro de seu cotidiano, com contos narrados com uma dose de realidade que vai se dissipando conforme o leitor e o narrador se aproximam do mesmo desejo: decifrar os mistérios da escrita. Os contos, reescritos pelo autor e relançados recentemente, estão envoltos em segredos e enigmas. Escritores cegos, bibliotecários surdos e mudos, lobos que visitam mosteiros, sonhos que viram realidade, incestos e pesadelos vão cercando o leitor e colocando-o num estado de vigília, quase duvidando do que lê enquanto passa a limpo suas próprias crenças e experiências. O impasse entre o real e a fantasia é a chave encontrada pelo autor para revelar uma certa “falta” que sente o homem moderno, o que se pode observar quando se lê os contos “A caminho do Poço Verde” e “Alguém dorme nas cavernas”, nos quais o tempo se alonga e as histórias parecem que não terão fim. O mistério que envolve as histórias representa também a dificuldade com as verdades absolutas e rápidas; é a dúvida às respostas prontas e em série da sociedade mecanizada e veloz, indício captado na leitura de “Os biógrafos de Albernaz”. A violência psicológica e física, o medo, a busca e a incerteza fazem parte do jogo literário a que se propôs o autor, cujo objetivo é questionar até que ponto o homem conhece a si mesmo e até que ponto se distingue de seus desejos e medos. O abandono das personagens às suas viagens oníricas e míticas é explorado com uma infinidade de referências que vão desde a literatura contemporânea às tradições religiosas. As metáforas usadas adquirem tom de profecia, numa linguagem fluída com algo de complexo, mas sem ser hermética. Em alguns dos contos, hesitamos entre o ritmo das lendas orais, as narrativas proféticas e o ruminar das personagens-narradoras consigo mesmas. O espaço onde ocorrem as ações é um campo simbólico mais do que físico, ora representado pela natureza ora pela fantasia, com poucas exceções, como no conto “A escola da noite”, onde uma favela é cenário de uma cena de violência física e psicológica, e no conto “A terceira vez que a viúva chorou”, que acontece quase todo na enfermaria de um hospital. O conto “Um certo tom de preto” desafia o leitor com a construção de personagens ‘duplicadas’, quem sabe se por elas mesmas, pelo narrador ou pelo próprio leitor diante da natureza incivilizada e perigosa do incesto. As narrativas “misteriosas”, quase fantásticas, de Rubens Figueiredo se completam quando se descobre que algumas das histórias de lobos que estão no conto “Alguém dorme” são, de fato, inspiradas no que se conta do lobo Guará, da serra da Caraça, em Minas Gerais, onde houve um incêndio no Mosteiro que há ali, tal qual no conto, e onde a Biblioteca é, assim como na narrativa, depositária de valiosos e raros exemplares. O Poço verde é também um lugar “real” e, dessa forma, o autor nos desafia a seguir suas pistas e encontrar, quem sabe, em uma caverna, o rosto petrificado da espeleóloga Raquel ou desenterrar os manuscritos escondidos de um homem-lobo, ou ainda encontrar Diana nas águas do Poço que deseja, obsessivamente, encontrar. Se há vacilo em seguir as pistas ‘reais’ deixadas  por aí, por essas e outras personagens, fica-se a “literatura” do livro. D’O Livro dos Lobos.

 

O Livro dos Lobos/Rubens Figueiredo/Companhia das Letras/160 páginas/30 reais

Publicado no jornal A tarde, 10/10/2009

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