sábado, 24 de outubro de 2009
Ateu, Saramago volta a confrontar Deus em seu novo livro, Caim
José Saramago é ateu. O que tem, então, a dizer um ateu sobre Deus? Como em O Evangelho segundo Jesus Cristo, no recém-lançado Caim ele envereda-se por um mordaz e irônico romance-exegese da Bíblia. Se no Evangelho Saramago concentra-se numa crítica ao cristianismo, em Caim ele estende essa crítica às raízes comuns do judaísmo, do cristianismo e do islã. Em ambos romances, a conclusão é a mesma: “Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco, salvo, afinal, que não se trate de loucura, mas de pura e simples maldade”. Mas seria impreciso dizer que o romance é apenas uma condenação de Deus. Afinal, que briga pode ter um ateu com um Deus que não acredita existir? Longe disso, o romance responde a uma pergunta muito mais relevante: Se fôssemos acreditar nas histórias da Bíblia, como seria esse Deus? A pergunta é não só pertinente, mas fundamental, na tentativa de compreender a civilização ocidental e os males dos nossos tempos, pois que nosso pensamento é inseparável da herança judaico-cristã.
Em Gênesis, no Antigo Testamento, Caim mata Abel por inveja, quando Deus se recusa a aceitar as oferendas de Caim, mas aceita as do irmão. Entretanto, na versão saramaguiana, Caim se rebela contra a culpa que lhe é dada; Deus é tão culpado quanto, diz ele, por tê-lo incitado ao crime: é o seu “autor intelectual”. É a partir da visão deste Caim rebelde, crítico, condenado à errância eterna, que vamos percorrer as mais diversas passagens do Antigo Testamento, descobrindo a cada passo um Deus arbitrário, vingativo, vaidoso e cruel.
Escrito com humor e ironia, com um domínio ímpar da língua portuguesa e mantendo o seu reconhecido estilo, o Caim de Saramago é a história da guerra entre um homem e Deus. No fundo, porém, mais do que uma sátira da Bíblia, o romance é uma crítica às interpretações que dela se tem feito e os seus efeitos na civilização ocidental. Em outras religiões, não existe a nítida separação entre o bem e o mal. Os deuses são, quando não amorais, simultaneamente bons e maus. Saramago, com afiada ironia, desvenda a falácia da representação judaico-cristã de um Deus que se supõe bom.
Ao mesmo tempo, a interpretação bíblica de Saramago é uma alegoria da realidade humana, e Deus, uma metáfora da corrupção do poder. Assim, seguindo a reflexão crítica que o autor vem fazendo sobre a realidade contemporânea em muitos dos seus romances, Caim pode ser lido como um convite a pensar esta realidade e as suas injustiças a partir de um olhar cuidadoso das nossas raízes ocidentais. O poder requer controle e obediência, castiga a insubordinação. Assim, Deus destrói Babel, pois os seus habitantes, ao desejarem chegar ao céu, desafiam a prerrogativa exclusiva de Deus. A pedido de Deus, Moisés ordena o fratricídio entre os judeus recém fugidos do Egito. O poder é vingativo e implacável, como demonstrado pelas inúmeras histórias de guerras genocidas de destruição e morte indiscriminada de homens, mulheres, crianças e velhos.
Esta releitura bíblica não é apenas uma reflexão teológica, mas uma atualíssima crítica da contemporaneidade. Não será por acaso que o lançamento de Caim coincide com as crescentes denúncias de crimes de guerra cometidos por Israel, na faixa de Gaza, no início deste ano, e com as recentes declarações do Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu de que as investigações da ONU “estimulam o terror e ameaçam a paz”. E é inevitável perceber uma ressonância entre a violência e arbitrariedade do Deus bíblico e os horrores no Meio Oriente durante a presidência de George Bush nos EUA e que continuam com o atual presidente.
Nesse mundo desvairado comandado por esse Deus “louco ou malvado”, são justamente as personagens que, na “versão oficial” são pecadoras ou malditas, as que se redimem através da rebeldia. É o caso de Caim, evidentemente, mas também de Eva, que enfrenta e questiona as arbitrariedades de Deus. E é também o de Lilith, personagem mítica (mulher-demônio, sedutora e erótica, segundo mitologias mesopotâmicas e hebraicas; a primeira mulher de Adão, anterior a Eva, segundo tradições cabalísticas) que Saramago introduz, anacronicamente, na história, reivindicando-a como exemplo de poder feminino e de liberdade sexual. Esta releitura não deixa de apresentar certos problemas, pois a personagem desenvolve-se apenas no plano do erotismo, reproduzindo, assim, estereótipos sobre a mulher que em teoria estaria Saramago tentando desafiar. Entretanto, personagens obedientes e devotos, como Abraão, Moisés e Noé, são representados como fracos, inconscientes e indignos. A fé cega e a obediência ao poder arbitrário, parece dizer Saramago, são fontes dos males da humanidade. Caim nos devolve, com humor ferino, o amargor da dúvida e a acidez da culpa.
Publicado no Jornal A tarde 24/10/2009
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Deus está morto...Só não podemos provar porque nunca encontraremos o corpo...
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