sábado, 10 de outubro de 2009

As vidas sem muros em ruas fortificadas




Milena Britto[1]

 

“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma  bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.” Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das  ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem. Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna. Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.

Título: A rainha do Cine Roma

Autor: Alejandro Reyes

Editora: Oficina do Livro

Páginas: 287

Preço: 13.50 euros


[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.

Publicado no jornal A tarde, 26/09/2009

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