sábado, 10 de outubro de 2009

Da internet à livraria: páginas vermelhas de folhetim




Milena Britto[1]

 

Aqui no subúrbio, quente e abafado, esquecido e ignorado, nos fundos de um mercadinho cheirando a barata, não existe desconforto maior do que o carregamento de porcos atrasar e expectativa maior do que vê-los, todos, pendurados por ganchos no frigorífico.

Edgar Wilson, Erasmo Wagner, Alandelon. Com nomes como esses, as personagens do livro “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, de Ana Paula Maia, vão esfolar vivos os que chegam desavisados. A ironia dos nomes soma-se ao humor ácido que circula nas páginas do livro. Sem filosofia, composições clássicas ou sujeitos glamorosos, os nomes ‘de batismo’ dessas criaturas convocam-nos ao centro de gravidade de uma vida urbana ou periférica sem retoques: o mundo sub  para além das paredes brancas dos edifícios, das luzes e letreiros que iludem a quem queira. Ali, o lixo, a noite, os chiqueiros, as fossas, são os espaços por onde andam os personagens, não por acidente ou mero efeito de scene, mas eles próprios conformando o ambiente repudiado pelos sentidos. Quem não torce o nariz ao odor desafiador dos dejetos e dos carros de lixo? Realcemos isso com os tipos humanos que realizam as escavações, que coletam o lixo, matam porcos, ou  que desentopem fossas.  Todos os sentidos do leitor são  invadidos na incursão naturalista e violenta da escritora por essas zonas soterradas, que imprime um traço particular às duas histórias narradas: O trabalho sujo dos outros e Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Além do pulp tarantinesco evidente, as personagens são duplamente castigadas: pela vida que levam e pelo “efeito” dessa vida sobre eles  mesmos. Os seus corpos e as suas mentes estão afetados. A surdez  pelo barulho da britadeira, o estado quase sonâmbulo dos que varam a noite recolhendo lixo, o espetáculo da violência canina, o surreal aparecimento de um bode, o cheiro constante e  irretocável dos dejetos. Essas visões, aparições e doenças interceptam as histórias e as deixam com ruídos, manchadas e em estado de pesadelo. A representação das realidades socialmente ignoradas por boa parte do público tem efeito de bomba, tanto pelos tipos humanos com quase nenhum caráter e muito sofrimento quanto pela linguagem direta e sem subterfúgios, numa repreensão a qualquer esperançazinha de que o trabalho ‘sujo’ e o jogo de sobrevivência desse mundo esteja sob algum pacto de “dignificação”. O livro, publicado primeiramente na internet sob o rótulo de folhetim,  não traz essa tão aclamada originalidade de tática ou estratégia de captar os olhares e a atenção dos leitores. No século XIX, muitos autores publicavam seus romances na forma de folhetim, em jornais, antes de publicá-los em livros. No caso de “Entre rinhas”, o amarelo das antigas páginas folhetinescas é substituído pelo vermelho vivo de um folhetim do tempo dos cybers, dos bytes e dos excessos. É  justamente no vermelho que as páginas impressas reagem: se as torcermos, é puro sangue.

Título: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos

Autor: Ana Paula Maia

Editora: Record

Páginas: 160

Texto publicado no caderno 2+ do A tarde, 19/09/2009



[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.

Nenhum comentário:

Postar um comentário