domingo, 14 de novembro de 2010

Uma carta de Kafka ao pai, uma canção de ninar: a memória de um filho


Publicado no caderno 2+ do A tarde em 13/11/2010

“Ao se dirigir a seu pai, Hermann Kafka, Franz não só me roubava minhas palavras, mas usurpava meu lugar de filho. As mesmas palavras que, em minha garganta, provocavam feridas que me impediam de falar, ditas por Franz descerravam a verdade”.

Não sei o quão verdadeiro é Ribamar, de José Castello, em termos de fatos; não nos faz falta saber. Porque há um caminho verdadeiramente incômodo a ser seguido nessa obra tão peculiar, mistura de memória, ficção, biografia, ensaio.
O “romance” sinuoso é escrito sob a escala de uma canção de ninar, transformada em partitura, com cada seguimento guiando os capítulos em tema, tempo, ritmo, sentimento.
Engenharia textual das mais finas e fortes, dando ao leitor completa incursão à intimidade do sentimento de um filho para com um pai cuja “ausência” – ambígua – já não deixa espaço para enfrentamentos concretos, restando à memória o dever de resolver esses espaços de amor, assombro, ódio, admiração, desconhecimento, mágoa, falta.O crítico que escreve para a Bravo, o Prosa e Verso e o Rascunho, admirado por seus textos de acento proeminente, literatura farta e escrita que faz de si mesma um caminho aos temas que trata – jamais fechando ali as portas e sempre se colocando significativamente no texto – já ganhou um Jabuti e escreveu sobre João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Moraes experimentando o gênero biográfico.
Mas esse romance sobre José Ribamar, seu pai, é muito mais do que uma biografia. Por seu caminho de construção, é um texto sobre outro ou um texto ligado a outros; um cruzamento de sentimentos que vai do assombro à raiva, do amor profundo à frustração, da pena à punição, à descoberta do esquecido. E ainda põe em evidência as formas ocidentais nas quais o sujeito guarda suas histórias na ânsia de retê-las, como diários, cartas, notas, dicionários que oferecem palavras ao infinito, bíblia que oferece mitos religiosos e mitologia clássica que segura arquétipos: em todos os textos, o nosso. Mas quais são seguros para nos guiar àquilo que desconhecemos, embora tenhamos vivido?
O autor encontra em Franz Kafka uma coincidência de sentimento em relação ao pai e usa Carta ao pai, do próprio Kafka, para analisar a relação deste com o seu progenitor.
Ambos, o narrador e Kafka, encontram-se muitas vezes nas semelhanças de sentimentos e de desejos – “só consigo escrever porque faço de Kafka um biombo” –, e Franz acaba sendo o espelho, o duplo, a sombra desse narrador que vai analisando a relação de Kafka com o pai, Hermann, enquanto reconstrói os fatos da vida de seu próprio pai e, mais do que tudo, encontra pedaços de vida sua e desse pai, encontra sentidos e sentir, restos de vida esquecidos ou ignorados pelo medo.
Descobre a sua ira e o seu amor contra aquilo que todos acabam sendo: pais e filhos.
A viagem que o autor fez ao Piauí, terra de José Ribamar, não traz histórias completas e sim partes do que poderia ter sido – ou foi –, mas vai revelando a luta do escritor para sedimentar um caminho, para concretizar em ação aquela busca sofrida de conhecer e se recompor na história “de” e “com” o pai.
Usando a literatura para pensar nos mistérios da memória, sendo essa a da vida, dos sujeitos e da própria literatura, o autor arrisca-se na edificação desse romance de encruzilhadas, de mil pontas, que vai de Tirésias à Kafka, passando por Defoe, Castro Alves; que sai de cartas e diários e vai à canção de ninar, recuperada anos depois, com uma voz crítica analisando etapas, mas mostrando ser impossível controlar o fluxo da própria história: “A escrita é traiçoeira, você pensa que escreve uma coisa e escreve outra”.
Com Kafka, Ribamar e Castello, o leitor compartilha aquilo que nunca nem pensou; encontra sentido em páginas nunca lidas e em respostas nunca dadas – quem sabe se o pai de Kafka leu a carta do filho? Quem sabe se o pai de Castello leu o livro Carta ao pai dado por ele? a quem servirão essas páginas erguidas da memória e da fantasia? – O leitor chega assim muito próximo ao caminho do narrador que oferece com verdade o seu lugar, o seu propósito, as suas dúvidas, ainda que ponha na mesa a falta de resposta:
“Talvez você não entenda. Mesmo ignorando minhas razões, percebe que me abstenho de ser. Isso me basta.”
É um livro denso e farto, bem escrito, embora difícil e ao final nos chega, não por Kafka, como uma carta “não escrita” ao pai.
Ribamar é uma aventura dura aos sítios obscuros da relação entre pai e filho, é um texto de uma humanidade cortante, ríspido muitas vezes, absolutamente embebido em amor em outras; um texto que comove por todos os lados, que se revela dentro e fora, que dá à palavra todas as formas de paixão, que desvenda e homenageia a literatura em seu lugar mais simples: a de se relacionar com o homem, de servir a ele, de falar por ele, com ele. E com seu pai.

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