segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Do Le Monde para a literatura: “esquisitas” palavras da pornografia erótica dos corpos ao desejo político de ser




Publicado no caderno 2+ do jornal A tarde
Fabiane Borges e Hilan Bensusan possuem muitas singularidades: os dois são parte de um “coletivo” de dois, o “Esquizotrans”, assinaram a coluna “Políticas Esquizotrans” no caderno Brasil do Le Monde diplomatic; ele é professor de filosofia na Unb, ela pesquisa “micromídias” de “maneiras megalomaníacas”; ele e ela são “esquisitos”. Isso pode ser bom, como o senti ao ler o trabalho literário dos dois em seu primeiro livro “Breviário de pornografia esquizotrans: para pessoas do avesso”, com prefácio Pedro Costa, da banda queer “Solange Tô aberta”.
A literatura e o corpo, o corpo e o gênero, o gênero e a sociedade têm sustentado uma relação complexa: a pedagogia do controle sobre o corpo sempre contou com a palavra e esta quase sempre serviu à manutenção do conhecido par “homem x mulher” – historicamente prevalecendo a superioridade de todo o aparelho masculino. A literatura, como a filosofia, sempre esteve atrelada ao espírito do momento, tendo, portanto, deixado-nos bem servidos de modelos ou questionamento dos modelos.
Acontece que o corpo – e a literatura – anda escapando às totalidades que, substituídas a cada par de décadas ou séculos, ajustavam-no à cena. Diga-se de passagem que, em cada momento, houve aqueles que causaram fissuras absurdas no corpo, na cena literária, na linguagem, na filosofia, na moral. É por aí que passeiam um Fernando Vallejo, um Walt Whitman, um Lezama Lima, Um Guimarães Rosa, um Nietzsche, um Foucault, uma Judith Butler, uma Beatriz Preciado.
O livro de Fabiane e Hilan vem escrachar a cena arrumada de um papai-mamãe bem literário, arrebentar calcinhas com pau intumescido coexistindo com vagina lubrificada, peitos e bundas alternando-se na cena do prazer, hormônios questionando tudo e se impondo à medicina, à vida compreendida parcamente a partir de duas – como não enfatizar – duas míseras categorias de gênero e só uma de desejo: o heterossexual. Mas, o que o “Breviário” vai trazer de mais intenso é um reconhecimento singular do transsexual, ampliando-se, inclusive, o “trans” para as condições de sexo, gênero, desejo ou identidade que se encontram diante de fronteiras, que escapam a qualquer prévia categoria ou mesmo espaço. E isso de forma literária, ricamente elaborada em imagens, metáforas, linguagem.
Há uma perversidade sem tamanho no tempo esse em que vivemos: entre tanto sexo explícito na TV e hit de axé e funk leiloando os corpos juvenis femininos, um recrudescimento moral impede o olhar escancarado e saudável sobre os corpos – veja-se a discussão sobre aborto da cena política atual – e a arte permanece engessada quanto aos limites de representação artística, humana, sexual e política dos corpos que abarcam tantas singularidades, explícitas cada vez mais, felizmente.
Os textos de “Breviário”, alguns podendo ser considerados contos e outros transitando em fronteiras textuais, trazem uma proposta estética claramente vinculada aos estudos teóricos “queer”, o que, a princípio, poderia enfraquecer o projeto literário. Particularmente, sou resistente a projetos artísticos de engajamento, salvo os casos que logram se libertar do discurso. Arte é arte, podendo ser política também. Mas não quero, quando leio literatura, um discurso político ou um relatório de ação social, quero emocionar-me, rir, transformar-me, sonhar, chorar, comover-me e compreender aquilo que desconhecia.
Foi assim quando li “infidelidade e descentralização”, “diferenças sexuais agudas”, “em cima do morro dos prazeres ou me monto herculina barbitúrico”, “amor no lixão”, “brenda comendo david”, “puta ontológica”, “projeto de duas feministas velhas” e outros textos do livro, o que me diz que o encontro prévio com as teorias queer não minimizou a criatividade, o roteiro artístico, o desejo e a sensibilidade dos autores.
No livro, é tudo sexo, explícito ou não – a depender do que cada um concebe como explícito e como ato sexual, afinal, Eva comeu uma maçã e mudou o destino da humanidade, a “virgem” Maria engravidou, os anjos não têm sexo e por aí se vê uma série infinita de “anedotas sexuais” presentes na nossa história e desprovidas de órgãos -, sim, é tudo desejo e sexo no livro do coletivo esquizotrans, mas, mais do que tudo, são gritos originais de socorro para as prisões dos corpos e para a arte.
A linguagem é um arco sem curva na maioria dos textos, um vocabulário “sexual” corajoso, mas, sobretudo, um desnudamento das categorias de palavras; o ritmo e o encadeamento da prosa oral vai colar-se perfeitamente ao momento contemporâneo de tanta velocidade, medicina, tecnologia, crise da ecologia: as palavras vão saltando e revelando movimentos, catarse, ironia; vão reacendendo a curiosidade filosófica, filológica, literária; vão reativando o homem na sociedade das máquinas, essas sejam as do mundo capitalista sejam as das políticas fracassadas.
A sensibilidade presente nos textos se revela tanto na crueza erótica e pornográfica dos encontros entre seres sem categoria, quanto nas sutilezas dos sentimentos de moças do interior sem dentes, escravas do ambiente patriarcal, sem direito a desejo ou mesmo a mirarem seu sexo com liberdade, como se vê no conto “o anel brilhante de elfriede jelinek”. Os trans e os intersexos ganham corpo (que no cinema o filme XXY já revelou) e desejo, possuem órgãos, os dois ou um só escolhido ou imposto, e vão escrever outra história para os que, também na arte, ficaram apagados, escondidos, desprezados, concertados, reescritos, disfarçados.
As esquisitices da dupla Borges e Bensusan – esquisito aqui mais para o sentido da língua espanhola – são bem-vindas, pertinentes. Literariamente há muitas propostas interessantes (outras não, o que também é bom de se ver: a literatura demanda muito esforço para se erguer e os autores, conscientes disso, simplesmente jogam-se livres e corajosos no desejo, o que por si só já atende a um princípio da arte: é preciso gozo). Ver os trans, as lésbicas, os gays, os heteros com desejos outros, com idades tantas, com subjetividades variadas, aflorarem pornograficamente é, por si só, uma experiência interessante. Ver a literatura chegar para a diversidade do desejo é ainda melhor. A pornografia é muito mais do que sexo explícito.

“Breviário de pornografia esquizotrans: para pessoas do avesso”/Editora Ex libris/154p./R$35.

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