segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sob o verbo, a literatura


publicado no caderno 2+ do jornal A tarde

A literatura é uma das artes que mais vínculos possuem com a crítica. A própria relação de metalinguagem entre ambas já se configura um íntimo e arriscado percurso que se constrói na articulação de interesses, conhecimento, desejo, desassossego, projeção, descoberta e reinvenção, elaborada na mesma mágica ferramenta: a palavra.
Como não se trata de falar de uma outra linguagem – como o é com as artes plásticas, a fotografia, o cinema, a música – a confecção desse texto novo, que se predispõe a iluminar o outro, pode ser uma ação desastrosa ou bem-sucedida, uma vez que é esse o texto que se propõe, sendo aqui imediata, a retirar da penumbra ou manter luzindo o outro.
Arthur Nestrovski, com a sua mais recente publicação “Palavra e sombra: ensaios de crítica”, chama-nos a atenção para o status quo da crítica literária, seu papel, seu percurso, enquanto que ele mesmo vai construir um corredor de luz sobre algumas obras sob o viés literário-artístico-cultural-político.
Na apresentação do livro, Nestrovski faz um panorama rápido da crítica literária brasileira, destacando os momentos de mudança – como a da década de 40, no rodapé dos jornais, “entre a crônica e o noticiário”, ou a de 60 com a crítica scholar, oriunda dos especialistas universitários – e apontando, inclusive, para uma reflexão acerca da crítica contemporânea e sua ainda existente relação com os jornais. Nomes como os de Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Antônio Cândido, Mário de Andrade e outros vão surgir pontuando-se uma história cultural e intelectual à parte e revelando-se um outro cânone: o da crítica literária.
Os ensaios críticos presentes em “Palavra e sombra” demonstram não tanto um mergulho nos sendeiros de construção literária dos autores em destaque – João Cabral de Melo Neto, Modesto Carone, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Luís Francisco Carvalho Filho, Roberto Schwarz, Philip Roth, Saul Bellow, John Updike, Don DeLillo, Kazuo Ishiguro, Richard Powers, Pankaj Mishra e Vladimir Nabokov – mas, especialmente, um entendimento tanto da cena literária que suporta as obras como da relação das mesmas com o movimento cultural, intelectual e político do contexto em questão.
Arthur constrói o seu texto com cuidado literário, escolhendo imagens que vão dialogar com o discurso que produz sobre a obra lida, parte do artifício de trazer das sombras as palavras. Algumas vezes abre o seu texto com narrativas, por exemplo, de como, quando e por quê estava lendo determinado autor, ou narra-nos uma imagem do livro lido antes de adentrar-se pelos caminhos críticos. Mais comum, entretanto, é abrir seus textos com uma citação ou pequena frase-mote que contém o mistério e a tensão de uma idéia que vai percorrer na obra.
A leitura de Arthur Nestrovski ultrapassa bastante os limites do texto e revela um conhecimento profundo da cena literária e cultural contemporânea. O livro se divide em três partes, uma da cena literária brasileira, outra da de língua inglesa e uma terceira de três produtos artísticos distintos: um filme (“Um filme sem imagens”), um livro de fotografia (“Êxodos”) e o teatro Vertigem (“Apocalipse I e II”).
Apesar de cada texto trazer uma série de referências – autores que dialogam com os escritores, ecos literários das tradições em jogo, interseções políticas, filosóficas, artísticas e culturais – os ensaios de Nestrovski se mantêm equilibrados e lúcidos, sem o peso erudito gratuito que deixaria carregada a leitura. O crítico é generoso em fornecer muitas das suas pistas de leitura e repertório e, o mais interessante, apesar de oferecer um texto literariamente bem cuidado, não deixa desaparecer de vista e nem tenta suplantar a obra lida.
Poucos são os críticos que pontuam seus textos com conhecimento refinado e demarcação honesta do lugar de leitura – entre eles vale aqui ressaltar que o trabalho do crítico Antonio Marcos Pereira é, na cena atual, um dos mais férteis e sólidos nesse sentido – e Arthur Nestrovski não apenas o faz como não se deixa cair na armadilha de seu próprio trabalho; ele mesmo escritor, enquanto crítico se impõe a tarefa de desvendar os mistérios dos textos e a sua relação com determinados assuntos/temas/acontecimentos/situações/histórias desde um lugar intermediário, buscando dar à obra uma certa luz, bem medida para não ofuscar.
“Palavra e sombra” é para mim uma bem-sucedida coleção de ensaios, funcionando ela mesma como farol que auxilia o encontro de caminhos, o diálogo honesto do crítico com a obra, complexa que é a tarefa da crítica e seu papel para a literatura. Afinal, retomando as palavras do próprio Arthur: “Se literatura fosse transparente, não seria preciso crítica. Se o mundo fosse transparente, aliás, nem seria preciso literatura. Palavras e coisas coincidiriam de modo absoluto, na luz de uma verdade sem sombra.”

Palavra e sombra: ensaios de crítica/Ateliê Editorial/R$ 35/165p.

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