segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Cortázar nos perde em Paris dos anos 60 e encontra-nos numa estação de trem


Publicado em 30/10/2010 no caderno 2+ do Jornal A tarde

“E já que vamos contar, é melhor pôr um pouco de ordem. A gente desce cinco andares e já está no domingo, com um sol inesperado para novembro em Paris.”
O desejo de pôr ordem no caótico emaranhado de fatos, expresso pelo narrador de “As babas do diabo”, que inspirou o filme “Blow-up” do Antonioni, não é um capricho qualquer. O fotógrafo, personagem do conto, duvida da realidade que seus olhos pensam ver mediada por uma câmera e a poesia dramática da vida se ergue sem imagens: essas são tão irreais que se confundem com as palavras.
São tantas possíveis maneiras de “desnarrar” o que se pretende contar que as páginas viram cenas de cinema; estas se transmutam em algum jazz extraordinário, para bons ouvidos, que depois explode em literatura, que inventa cidades, que devolve o tempo ao homem, que vira leitor, que redescobre o livro para nele se reinventar e começar outra vez. Essa realidade porosa vai escancarar a complexidade da vida e do ato de viver a vida num descompasso alucinante.
Os contos de “As armas secretas”, de Julio Cortázar, lançados pela primeira vez em 1959, são peças nobres da literatura. Cinco histórias que levam grandes projetos literários voltarem a ser pensados, do idealismo romântico à fragmentação pós-moderna. O elemento fantástico, tão peculiar na obra cortazariana, não surpreende em seu estado de absurdo, mas por ser colado à realidade invisível e emanar da simplicidade contida no cotidiano.
Como se desmontasse várias camadas de literatura, e de fantasia, o autor, no conto “Cartas de mamãe”, esmiúça o universo psicológico da personagem principal, um filho que recebe cartas da sua mãe, e leva o leitor a um percurso com o próprio narrador. As cartas chegam a um cotidiano em Paris, vindas de Buenos Aires, do cotidiano de uma mãe solitária. Narram cotidianidades e mantém segura a vida de todos os envolvidos, incluindo a nós, leitores.
Um dia, uma palavra na carta, numa frase corriqueira qualquer, um nome próprio fora do lugar, um equívoco, desarruma tudo: a vida, os dias, o conto, a literatura. Um morto vai chegar no trem das 11:45, um irmão culpado pena entre uma e outra carta da mãe que “ está louca!” e escreve coisas absurdas, uma esposa mente para o marido e sonha com o falecido cunhado, uma traição inventada pela nossa desconfiança e um escritor revelando segredos da escrita e de seu ofício. Uma carta, uma palavra fora do lugar esperado e com isso a literatura construindo o impossível.
A delicadeza dos sentimentos das personagens algumas vezes se transforma em ironia das mais finas, e o leitor vai adentrando-se nas nuances variadas dos fatos. Em “Os bons serviços” o narrador introduz uma ambígua naturalidade aos mais absurdos fatos que acontecem a uma senhora diarista que serve à burguesia francesa. Cuidando de cinco cães enquanto os patrões se divertem numa festa, a personagem descobre, antes de nós, que tudo é sonho e pesadelo, que as realidades se confundem porque somos presos a elas. Entre a trágica situação dessa miserável e quase abandonada diarista, todo o espetáculo da morte se revela: contratada para chorar um defunto, ela se depara com o único ser que tivera com ela um gesto de carinho. E suas lágrimas falsas se tornam verdadeiras, embora ela jamais saiba o que é aquilo tudo, quem são aquelas pessoas que a levaram de uma sala com cães a um velório...
O livro vai se desdobrando em percursos inesgotáveis. Sobrevivemos aos contos pensando serem extensão de nossas vidas, de nossos sonhos. Os aspirais eróticos de cenas que nada possuem de explícitas fazem-nos crer numa força secreta, num mundo secreto, que nos deixa cegos diante do caminho sem fim. A ruína, o desejo, a fantasia e a realidade estão ali, no livro de Cortázar, mas poderiam, como disse Arrigucci Jr., estar num Juan Rulfo, num Borges, num Onetti. Poderia pelo fantástico da obra, pela genialidade da escrita. Mas não pela bem truncada prosa, não por esse jogo - que sempre funciona por mais que o saibamos - do escritor consciente brincando com o fantástico e um falso descontrole. Os cinco contos nos chegam desafiantes, como a vida desafiou o artista Cortázar a sobreviver e escrever naquele seu – nosso – tempo. Ouçamos um jazz e salvemos do suicídio qualquer personagem, enquanto outros caminham em nossa direção na estação de trem. Em Paris.

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