domingo, 21 de novembro de 2010

A poesia em Tarja Preta






Publicado no caderno 2+ do A tarde em 20/11/2010

“Minha mãe me chamava de mestiço/a professora já dizia moreno/a vizinha falava mulato/e o meu pai achava tudo engraçado.”


Os versos do poema Qual é a cor? do poeta, MC e cantor Zinho Trindade, bisneto de Solano Trindade, desperta os cantos abafados da história mal contada: o racismo é invenção, ninguém viu e ninguém vê.
Nas estrofes, a verdade de quem se descobre negro enquanto percebe que sua vida vale menos - porque sua cor é outra - instaura-se na memória como canto: “Quando eu era pequeno, eu não sabia/Eu não sabia, eu não sabia não/Não entendia a cor/Qual o valor/ O porquê brigar e o porquê amor”.
Com prefácio de Nelson Maca, Tarja preta é o primeiro livro de poesia de Zinho Trindade e, seguindo o tom da literatura periférica - ou marginal-, localiza no presente temáticas e propostas. Os versos insistentes denunciam o Brasil injusto, racista e violento de muitos: “Terras paradas, latifúndio vazio.../Tupi, Pataxó, Xavante, Pancaruru, Cariri/Tupinambá, Carijó, Funiô, Carajá/Potiguá, Tupinajé, Caeté, Ianomâmi/De 10 milhões a 280 mil./Ser humano em extinção/O moleque, o fuzil/Na pátria que ninguém viu.”
Cordialidade não há naqueles versos da literatura cunhada por Nelson de “Dissidente”; há, contudo, a crônica cotidiana da luta, o “retrato de uma guerra nada particular”, o ritmo dissonante do hip hop, as batidas do maracatu, o ronco dos tambores. Há ainda uns versos excepcionais - em meio a outros nem tanto- e uma outra história embalada em falares populares, português coloquial e musicalidade afrobrasileira.
As pegadas contemporâneas dos mixies improváveis se costroem nos versos que deslizam do presente, deixando, a uma só vez, vestígios da ancestralidade do povo negro e compreensão tenaz da realidade bruta do nosso tempo: “Escreveu não leu, o tiro comeu, menor se fodeu e a/ polícia venceu.”
A poesia de Zinho Trindade “brota do campo da batalha”, como diz Maca; é armada; a lança afiada de um guerreiro que, além de estar pronto para a batalha contra o sistema bruto e violentamente racista, sabe que há que se dominar o inimigo dentro de si mesmo, vencer qualquer vestígio da outra história: “Quantas vezes/Não me senti um nada/Um mísero nada./Um cigarro queimando, /Morrendo lentamente/São nesses momentos que derrubamos o Golias/Que nos habita.”
Zinho sonha, canta, denuncia, grita, acorda Solano, o outro Trindade. E com saber agudo, entre os trampos dos pretos, a paulada da história traidora e a força de sua negritude, o poeta ainda arregaça com ironia cáustica o resultado do progresso elitista no poema My Machine: O homem/É a sua própria máquina/Seu espelho/ Pequeno para si próprio/E a sua ambição/ Será a degradação.” Que esse Mestre de Cerimônia continue firme na trilha – urbana – da poesia. Que o diálogo com Solano prossiga, a poesia venha, a denúncia se faça, o soluço continue e o zumbido das balas transforme-se em outros “ZUMBIdoS”. Que o poeta Zinho Trindade, faça, sim, barulho. De pássaro-preto rebelde.

Tarja Preta/ Edições Maloqueiristas/ 83p. 2010/R$15,00

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