sábado, 23 de abril de 2011

Da janela se vê o Bósforo: a pintura com palavras de Pamuk

Publicado no A tarde
Milena Britto – Professora do Instituto de letras da Ufba
millenabritto@hotmail.com


“A literatura não permite a um escritor fazer de conta que salvou o mundo; no máximo, ela lhe dá a oportunidade de salvar um dia de cada vez.”
Quando terminei de ler “Outras cores – ensaios e um conto”, pus-me a pensar que tudo o que eu sei de escritores e escritura, leitores e leitura, é algo tão minúsculo que todos os anos de esforço pareceriam em vão. Contudo, ao invés de sentimento pesado, foi uma alegria constatar isso e saber que, para a vida toda, esperam-me descobertas que as palavras guardam e que só em um tempo próprio é que elas se farão matéria única.
Orham Pamuk, escritor turco que ganhou o Nobel em 2006, conseguiu compor uma obra imprescindível para aqueles que se dedicam à compreensão da força que a literatura tem para a vida. No livro, não há apenas uma escrita forte e bela. Muito menos é só o reflexo de um homem sensível, agudo e erudito. O livro confere os atributos anteriores adicionados à paixão de um homem pela escrita até o último grau; disposto a pegar todas as oportunidades para escrever com lucidez e com um poder de entrega tão grande que contagia o leitor.
Em seu livro, os escritos vão desde anotações sobre o cotidiano, entrevistas, contos, até ensaios e reflexões sobre política, análises literárias, escritos sobre cultura, guerras, disputas entre oriente e ocidente, terremoto, pobreza.Tudo sem deixar, em uma linha sequer, que desapareça o escritor e um leitor implícito, numa relação absolutamente sincera e assumida.
Em “Viver e preocupar-se”, o mote é a relação entre o autor e sua filha Rüya, descrita a partir de uma saída à praia, ou da contemplação do velocípede da menina no meio da madrugada abandonado em um solitário canto da casa. As palavras simples vão dando conta não apenas do profundo amor pela filha, mas de poder entender as pequenas coisas desta relação como uma forma nova de ver o mundo e de compreender-se nesse mundo. Orhan vai acrescentando a isso detalhes de vida externa, como nas duas crônicas excelentes sobre os terremotos perto de Istambul que fecham essa parte.
Nas duas crônicas, a dor por tanta desgraça é pontuada pelo olhar de Pamuk, que encontra as mínimas expressões da realidade que vão fortalecer a prosa que se estende pelos diálogos, críticas, dúvidas e emoções.
Orhan, em “Livros e leitura”, revela suas impressões e descobertas de leitor; comenta Victor Hugo, Dostoievski, Vargas Llosa, Arthur Miller, Thomas Bernhard, André Gide, Joyce,Virginia Woolf e uma série de escritores que passaram por seu caminho.
A condição de escritor localizado no mapa não faz da leitura de Pamuk um jogo contemplativo para nós, leitores ocidentais. Suas preocupações de homem interessado por sua sociedade, sua política e sua cultura, tão duras como deve ser para quem vive no meio do caminho, logram prender o leitor para além de conjecturas como “cultura hegemônica” versus “cultura marginal”. Ele confessa admirar o “orientalismo”, de Edward Said, mas suas observações desde aquele lugar acrescentam muitíssimo às análises.
Pamuk, que queria ser pintor quando criança, é um mestre do detalhe e em “Imagens e textos” ele revela toda essa capacidade, deixando-nos com análises magníficas, como quadros pintados com palavras, conforme sua própria definição de escrita. E repensa-se todo o tempo como escritor e como cidadão, basta ler o capítulo “Política, Europa e outros problemas de sermos quem somos” para ver.
Em “Meus livros são minha vida”, ele fala da chegada de Arthur Miller a Istambul; critica a política repressiva turca, revela-nos segredos de suas leituras, emociona enquanto chama para o diálogo entre culturas; e o belo é que, entre esses temas, descreve-nos sua mirada da cidade desde a janela de um táxi e, vez por outra, reacende-nos a imagem que ele mais gosta: a de ver o Bósforo no fim de tarde desde seu apartamento.
“Outras cidades, outras civilizações” encerra o volume e, posso dizer, com essa mistura rara entre o cotidiano e o mais intelectual dos temas que se vê em todo o livro, Orhan Pamuk logra comover-nos e tocar esse lugar da vida que tão esquivo e tão difícil de nomear é; isso que talvez seja apenas possível de juntar de forma mágica e viva na literatura. Como a desse escritor.

Outras cores –ensaios e um conto/Companhia das letras/trad. Berilo Vargas/477p./$R 57,00.

Nenhum comentário:

Postar um comentário