Publicado no A tarde
O escritor J.M Coetzee, que nasceu na África do Sul e tornou-se cidadão austríaco, já ganhou um Nobel da literatura e muitos outros prêmios importantes; porém, a despeito disso, sua fama entre os intelectuais vem da forma como encara o seu papel de escritor e o lugar da literatura no mundo, no curso da história política e em sua condição de arte.
O seu livro de ensaios “Mecanismos internos” revela uma posição definida por si e para si como a de um escritor “consequente da leitura”. Para ele, a escrita só é possível porque ele lê; essa é a única forma para ele escrever e, mais ainda, a única que possibilita que a escrita seja algo próprio, algo em si mesma, já que ela resulta do exercício de leitura e de seu profundo entendimento.
A sua ficção é produto das reflexões feitas a partir de escritores ocidentais e essa escrita o põe em diálogo com o canônico e o não canônico de seu tempo, respeitando o lugar da “memória literária”, da tradição, do repertório.
Esse “ler” significa estabelecer forças e valores para determinados autores, considerando os mecanismos internos de suas produções, mas sem deixar de fora o lugar do sujeito histórico que é o próprio autor. Sendo ele próprio um escritor que localiza boa parte de sua obra a partir de um país pós-colonial e subdesenvolvido, esse aspecto adquire ainda mais relevância em seu lugar de crítico.
São muitas as vezes em que ele resgata o autor para ajustar a leitura que faz da obra. Quando analisa narradores na ficção ocidental, como no ensaio sobre Sebald, por exemplo, o faz destacando na obra a intersecção e a dimensão do sujeito histórico.
Nos vinte e um ensaios do livro, Coetezee exercita o seu olhar a partir das questões que permearam os textos escolhidos para resenhar e defende uma abordagem política vinculada às questões estéticas.
É assim que J.M Coetzee vai discutir escritores cujas obras circularam ou produziram-se a partir de contextos político-históricos, por exemplo o Holocausto, como se vê no ensaio intitulado “Paul Celan e seus tradutores” – nesse ensaio, as questões anti-semitistas são problematizadas nas relações entre tradutores e autores, bem como vai dimensionar o lugar de uma nova proposta estética, o que vemos quando ele discute Italo Svevo. Esse ensaio, em particular, serve para ver de que maneira o excentrismo do autor italiano e a sua “forma” moderna repercurtem na própria estrutura da produção ficcional de Coetzee, sendo mesmo uma espécie de mecanismo para o seu projeto geral de escritor.
Um papel ético e estético importante que, segundo ele, a literatura desempenha no nosso tempo é colocar a condição humana no centro da discussão. Não é à toa que ele dedica grande espaço a Italo Svevo, Sándor Márai e Walter Benjamin.
Ao abordar cada obra que se propõe a ler, Coetzee cerca-se de leituras que vão localizando, discutindo e questionando desde as diferentes razões pleiteadas por cada autor para justificar determinadas posições, até às escapadas que a psicanálise pode explicar - ou aponta o próprio exercício psicoanalítico dentro da obra. É assim no ensaio sobre Robert Walser cuja biografia inserida no ensaio, juntamente com o aspecto sexual destacado da personagem, leva-o ao percurso interno de construção do texto desse autor que, mesmo sem ser daqueles politicamente envolvidos num propósito, provoca uma ruptura e uma reconfiguração de direção a partir do lugar do desejo – ou, melhor dizendo, do desejo da personagem.
Depois de ler a obra ficcional de J.M Coetzee, o leitor talvez não espere dele um papel de resenhista ideal, dado o aspecto oblíquo de sua obra, mas é justamente o contrário: o lugar de crítico e ensaísta traz um texto absorvente e agudo. Esse “outro” texto, produto da razão e da erudição do autor, bem como de sua atenção ímpar à condição humana nos tempos de conflitos, guerras e desequilíbrios, revela um escritor que vincula a sua obra a sua condição de leitor do mundo, à condição de homem e de sujeito numa história em curso.
Mecanismos internos/trad. Sergio Flaksman/359p/ R$39,00
sábado, 23 de abril de 2011
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