sábado, 23 de abril de 2011

Enquanto dura um Jazz

Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba
millenabritto@hotmail.com

Foi invocando os ecos da "geração perdida"que me inclinei a ler o premiado “Alabama Song”, do francês Gilles Leroy.
Das sombrias às mais ternas experiências de se escutar um bom jazz ou se ler um bom livro, só ao final se pode saber o saldo do ato. Neste caso, entrar na intimidade de Scott Fitzgerald, para o bem e para o mal, não possibilita ao leitor o gosto prazenteiro do bis.
Há quem pense que tentar ultrapassar os limites que separam a biografia da ficção é um exercício arriscado. A questão se complica ainda mais quando, como é o caso, a história fez do personagem mito e símbolo de toda uma época. É isso o que acontece com “Alabama Song”, romance no qual Leroy recria a figura de Zelda Sayre e sua atormentada existência junto àquele que foi seu marido, o romancista americano Francis Scott Fitzgerald.
Pertencentes à chamada “geração perdida” – termo cunhado por Gertrude Stein para referir-se aos jovens escritores norte-americanos nascidos no período de entreguerras – Zelda Sayre e Scott chegaram a converter-se em um dos casais mais famosos de Nova York.
“Alabama Song” é um relato cru, escrito em primeira pessoa, no qual Zelda – na idade de quarenta anos e reclusa em um hospital psiquiátrico – rememora seu passado e sua mal sucedida vida conjugal junto ao escritor desde a sua juventude.
No livro, Gilles Leroy desenha Zelda como uma mulher de caráter frágil, mas independente que, além de ser dotada de um grande talento para a escrita e a pintura, viveu, tanto no âmbito pessoal quanto no artístico, submetida ao cruel autoritarismo de seu marido, ciumento de sua criatividade e de seu temperamento apaixonado e vivo, distanciado das convenções da época.
Através da voz desgarrada de Zelda, Leroy desnuda sem pudores a figura de Scott Fitzgerald; despoja-o de seus elegantes trajes para descrever-nos um homem arrogante e degradado pelo álcool, cuja vida pessoal, segundo o romance, nem sempre soube estar a altura de seus êxitos profissionais e da imagem de refinado sedutor que projetava a seu redor.
Junto ao casal, pelas páginas do romance, desfilam outros autores com os quais Zelda e Scott mantiveram amizade, como Gertrude Stein, Hemingway (camuflado na história sob o nome de Lewis), John Dos Passos e Maxwell.
“Alabama Song” é um tratado em defesa de Zelda, no qual Leroy – em suas próprias palavras – pretende reivindicar sua figura e libertá-la dos prejuízos que, erroneamente, grande parte dos biógrafos de Scott Fitzgerald tem contribuído para difundir sobre ela. Segundo o autor, o famoso escritor não duvidou em nenhum momento de apoderar-se de alguns textos e artigos de sua mulher com a desculpa de que sob seu nome receberiam melhor acolhida, além daqueles que teria maquiavelicamente extraído dos diários e da correspondência privada de Zelda para elaborar seus romances.
Baseado em numerosos documentos disponíveis que reuniu sobre o casal, Gilles Leroy devolve a Zelda – sob a forma de um imenso monólogo a que o livro recorre do começo ao fim – o dom da palavra.
Durante a sua reclusão no hospital, Zelda se aferra a suas recordações numa tentativa desesperada de manter a lucidez e recuperar, de alguma forma, o sentimento de controle sobre a sua vida. Através da escrita, seu relato, entrelaçado aos fios dos episódios que vão aflorando livremente de sua memória – seguindo uma ordem cronológica – irá adquirindo o caráter de um doloroso ato de expiação. Ainda que pese a terrível carga emocional que acompanha muitas de suas recordações, sua voz, longe de fraquejar, amadurece e se fortalece com a dor, consciente de que só enfrentando com coragem as passagens mais obscuras de sua memória, é possível ganhar a batalha sobre a loucura e o desespero.
Com um estilo pulsante e irônico, que alterna passagens de grande sensibilidade poética com outras dominadas por um abrupto realismo – beirando até o escatológico – Leroy consegue manter o interesse e a tensão do leitor ao longo de toda a narrativa, cavando com profundidade os conflitos internos da mulher que foi musa e inspiradora do autor americano.
Sem dúvida, por muito que o romance resulte excelente, tanto em sua construção quanto no perfil que faz das personagens, através de sua leitura é inevitável se perguntar – como acontece sempre que nos deparamos com uma obra que conjuga elementos biográficos com fictícios – o que há de verdade e o que há de lenda atrás das pistas em que Leroy se baseou para construir seu romance?
De fato, depois da publicação, não foram poucos os protestos daqueles que consideram que Gilles Leroy traz em seu livro uma imagem excessivamente crítica de Fitzgerald; outras que dizem que ele foi muito longe em suas revelações, como o momento em que Lewis, alter ego de Hemingway , é flagrado em uma situação comprometedora, sobretudo pela evidência homossexual, junto a Scott.
Seja como seja, o romance, consegue deixar no leitor essa marca forte de Zelda e, sem dúvida, ao terminar a última página, como se toda a vida durasse um Jazz, há que se esquecer do “replay” e sair com Zelda – e Scott – atrás de alguma coisa perdida. Um geração perdida.

Alabama song/Record/207p.

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