sábado, 23 de abril de 2011

O amor no “lado B” da cidade

Publicado no A tarde, caderno 2+

Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba




A literatura beat tem influenciado muitos escritores, particularmente, àqueles que enveredam por uma contestação da ordem burguesa a partir da agressividade da linguagem, dos temas abjetos, apodrecidos, escusos. Dentre os chamados “beats”, Charles Bukowski – que segundo alguns críticos não deveria estar entre os beats – é o mais ácido, o intransigente com relação à linguagem, ao estilo, aos temas. Impossível não pensar nele quando lemos algo duro, colhido dessa realidade sórdida comum a todas as épocas, países, cidades: a realidade dos becos, vielas, bares, prostíbulos.
Ao cair nas minhas mãos o livro de contos “Elas etc” assinado simplesmente por Tico, confesso que tive minhas dúvidas se iria gostar, apesar de ter uma apresentação assinada pelo Ferréz, que também foi o primeiro a publicar Tico na coletânea “Literatura marginal” em 2004. Mas isso tudo – minha desconfiança e suspeita – durou até eu sentar-me a ler o livro. Tinha algo de Bukowski ali, mas tinha, sem dúvida, uma pegada própria também.
Logo depois de passear pelas primeiras páginas, “desconfiei” que sairia dele abalada de alguma maneira. Para iniciar aqui uma conversa breve sobre literatura – pensando no tal Tico – tento não me deixar cair na armadilha de quem é o autor, tratando de ler a obra como algo independente.
Mas isso não é de todo possível. Não apenas por nossa tradição de autoridade da escrita, mas também porque a palavra pode ser assumidamente política (sim, podemos ir para Benjamin, Barthes, Foucault, Bakhtin, sair da análise do discurso, da estética literária e até da psicanálise) mas uma coisa é certa: no fundo queremos saber quem foi que escreveu aquilo e se possível até ver uma foto do sujeito. Então, sobre Tico, tendo ele sido descrito como anarquista, não foi possível livrar-me da informação e me via entre uma página e outra pensando nisso. Entre anarquia e favelas, esse Tico dá umas pauladas das boas, deixando arder as palavras sob nossos olhos, mas também deixando um rastro de delicadeza que comove.
Não, o leitor não tem a sensação de estar diante da Tv com os programas sensacionalistas sobre favelas e bandidos. É como se, ao contrário, todas as armadilhas que nos afastam dessa realidade comovente fossem arrancadas: fica apenas o leitor e aquele mundo escondido, temido por todos.
Os contos de “Elas etc” tem o protagonismo dado às mulheres, mas tem muito mais: um universo de escritores, referências literárias colocadas como pistas do imaginário poético do autor, cenários densos e, sobretudo, tem uma ligação intensa com a realidade das periferias urbanas. As histórias são construídas colocando-se as personagens num frágil fio que pende entre a vida e a morte, já que são partes desse “lado B” da cidade. Os contos são dos que marcam o leitor tanto pela narrativa precisa quanto pela tenacidade do envolvimento de quem lê com os sentimentos das personagens.
Há histórias de amor e morte em barracos nas quebradas. Em um conto, a droga, o cigarro, o sexo, o vazio de esperanças misturado à persistência de sentidos, deixam a sensação ambígua da impossibilidade de se evitar as tragédias e ao mesmo tempo a luta absurda pela emergência da vida. Depois do coito, no conto “Paixão explosiva”, o casal conversa, o homem fala de Byron, a mulher, até então quase anônima para ele, mostra a ternura e a curiosidade com a vida. O cenário é desmantelado, feio como se imagina um beco qualquer, um barraco qualquer, mas as imagens chegam a ser poéticas. Nada adianta, contudo: a tragédia impera mesmo sem balas e perseguição da polícia: a explosão do barraco pelo cigarro aceso da mulher dá um desfecho onde a surpresa é a “surpresa” e a dor do homem: há mais vida e mais sentimento do que se imagina por trás desses mundos outros.
“Álbum de retratos” é diferente, vertiginoso, ritmo frenético com uma espécie de transposição catártica. Um barraco, onde uma quadrilha se recupera de um assalto, é invadido por policiais que acabam exterminando o grupo. Duas personagens sobrevivem e sente-se a dor do bandido desesperado porque vê o álbum de sua família inexistente ser queimado: a fantasia de uma foto de uma família feliz importava mais do que as jóias roubadas e foi por isso apenas que houve assassinato das vítimas, o roubo era da ilusão da família e não do dinheiro.
A família volta outra vez no conto “A bela que abala libido e o almocreve”, no qual o sujeito recém saído da prisão assiste a morte de sua mãe prostituta pela Tv, atingida por uma bala perdida saída da arma de sua amante, uma policial. Ironia maior: ele havia tentado, sem saber de quem se tratava, dar à velha prostituta um buquê de flores. São muitos os contos, alguns muito mais interessantes do que outros, sobretudo com relação à narrativa e à linguagem, que oscilam.
A linguagem dos contos é peculiar: coloquial, explícita, direta, imperfeita, mas, também, com vestígios de erudição, vocabulário rebuscado que aparece aqui e ali de propósito. Eu achava, a princípio, que isso quebrava a força apelativa da representação daquela realidade, mas acaba sendo tanto um ponto de ironia como uma peleja com absurdos cruzamentos, com essa malha de tensão na que se vive hoje, os limites ou o limiar de pertencer ou não a um mundo.
Mas nada ali enfraquece o valor da obra, a qualidade da escrita. É “literatura A” mostrando o “lado B”. Tem vida daquele lado também. E o escancarado de lá é mais terno do que se supõe o lado de cá. Literatura dissidente marcando um tempo, uma geografia, uma política.
Editora Edições inteligentes/111p/$20,00

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