Publicado no A tarde, caderno 2
Quando o historiador e cartógrafo britânico Felipe Fernández-Armesto, a propósito de investigar os lapsos da história de Américo Vespúcio, se propôs a responder à pergunta “quem foi aquele mago de palavras e até onde ele de fato foi?” acertava o caminho que o conduziria a uma bem sucedida biografia daquele que ficou famoso apenas por ser um arguto e brilhante “mentiroso sobre si mesmo”– que bem sabia o valor que possuíam as palavras para a posteridade.
Armesto escreveu um livro cativante; não apenas consegue documentar as informações ou destacar a improbabilidade delas, como se coloca na posição de leitor daquele tempo, considerando o contexto, mostrando com humor, elegância, e fina ironia, de que modo a história conseguiu ser “vítima” de um grande embuste.
Américo Vespúcio não nasceu de família nobre, mas com certo prestígio em Florença. O pai o pôs a se educar com um tio de formação renascentista. Daí a sua paixão pelas coisas do mundo, da ciência, curiosidade, encanto com as aventuras. Leitor de Cícero, Estrabão e Ptolomeu, Vespúcio levou consigo muito desses autores, seja em seu imaginário ou em seu desejo de equiparar-se em fama e feito.
O futuro navegador foi comerciante, agente bancário, administrador e, segundo fortes indícios, cafetão e trambiqueiro, antes de construir, com sua lábia e esperteza, a sua carreira de desbravador de mares e cartógrafo. A sua vida íntima é rodeada de mistérios, com possíveis relacionamentos obscuros e filhos ilegítimos, e a companheira “oficial” parece ter sido também pensada como oportunidade de ascensão.
Amigo de Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio “roubou” partes de seus relatos de viagens, na tentativa de convencer que havia navegado mais do que de fato navegou, mas também usou da amizade para aprender e trocar; aparentemente, tinha mesmo amizade, devoção e apreço pelo outro desbravador, o que não o impediu de lhe passar a perna.
A ambigüidade do caráter do homem que deu o nome a América não faz menor sua figura, mas incita mais curiosidade e espanto ante o complexo que foi aquele momento: a descoberta do novo continente, como já sabido, estava envolta em ambição econômica, delírio religioso, sede por conhecimento, desejo de fama.
As descrições das viagens de Américo, relatadas em cartas e publicações posteriores a suas viagens, são duvidosas; as que certamente foram escritas por ele apontam imprecisões, aumentos, empréstimos de outros navegadores e até da literatura medieval.
Pelo que revelam as pesquisas de Felipe, por mérito, o continente deveria ter o nome de Cristóvão Colombo, mas um erro de leitura de Martin Waldseemüller, um dos dois cartógrafos alemães que foram responsáveis pela certidão de batismo do novo continente, foi atribuída a Américo a homenagem.
A leitura que ele fez de um dos relatos no qual Américo exaltava a si mesmo, falava das distâncias, dos mapas (que ele mesmo ajudou a confeccionar) e descrevia povos ameríndios, paisagens, costumes, o levou a acreditar na grandeza de Américo sem a investigação e comparação com os documentos que mostravam claramente que Colombo foi quem de fato mais fez; Américo Vespúcio, apesar de dizer que navegou muitas vezes, provavelmente só tenha navegado duas.
Vespúcio tem seus méritos, já que cartografou, de fato, milhares de quilômetros ainda desconhecidos ao sul do Equador, observou os habitantes, lançou-se corajosamente pela aventura de encontrar o caminho para a Ásia. Mas a biografia documentada por Felipe mostra que o florentino era um talentoso “marqueteiro” de si mesmo, pintando-se muito maior do que era e dando-se muito mais feitos do que fez.
Não há novidades no que se refere a visão dos indígenas ou às disputas entre Portugal e Espanha; nem mesmo ao Tratado de Tordesilhas, comprovadamente influenciador das aventuras portuguesas e espanholas. O que há de interessante é a constatação de que a história é uma narrativa fictícia, moldada e construída para dar sentido ao rumo que se quer; o que não a faz pequena: toda uma ficção pode terminar por influenciar e determinar o futuro de um continente. É só ver com cuidado essa América daquele tal Américo.
Américo – o homem que deu seu nome ao continente/Cia das letras/trad. Luciano Vieira Machado/308p.
sábado, 23 de abril de 2011
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