Publicado no A tarde, caderno 2
O mais novo romance de Marcelo Backes, “Três traidores e uns outros”, vem acrescentar à literatura contemporânea matizes de um tempo cruzado.Como parece, a literatura, coletar as tendências, as idéias, a filosofia, os modos de viver de uma época, é possível traçar, na produção literária atual, caminhos que se repetem e se configuram como marcas dessa escrita: a literatura nacional vai se distendendo e se assomando a outras geografias, outras paisagens, outras vozes. É a geografia de muitos lugares dando conta da intimidade de sujeitos. Do sujeito brasileiro.
Assim como outros escritores dessa geração, o tradutor, crítico e romancista joga com os percursos globalizados da geografia, nesse momento capitalista de emoções perdidas. Dinamarca, Alemanha, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul são alguns dos lugares que vão surgir como parte da paisagem, que não apenas e não só no espaço físico se pode observar, mas também na língua, no passado reconstruído, nas histórias soltas e dispersas das viagens recolhidas, nos autores citados.
Passado e presente se vertem de força convergente no romance, que aborda o amor, o sentimento de perda e de espanto diante da dor das paixões – causadora de tragédias grandes -, enquanto se coloca a serviço de explorar com apuro a arte de narrar. Basicamente, é um romance que explora o amor como drama do sujeito contemporâneo - revelando-o, como dito na orelha, medieval nesse aspecto, ainda que inserido no tempo da velocidade e da tecnologia - e as formas de se narrar depois de uma história grande de tradição literária ocidental.
O narrador, um tradutor – como o autor, nessa “autoficção” de brinquedo e de verdade - vai experimentar narrar de dentro e de fora de situações, deixando que suas próprias vivências sentimentais orientem e se mesclem a outras, quando passa a ser o tradutor das sessões de psicoanálise de um empresário alemão ou quando se “envolve” na narração do drama de Toz, personagem que não escapa à armadilha de uma mãe freudianamente eficiente: tímido, sem conseguir namorar e ameaçado pela mãe de perdê-la para a morte caso viesse a se casar, Toz sucumbe ao caminho narrativo psicanalítico: enforca-se...
Às voltas com a sua própria história, o “tradutor-narrador” vai se reencontrar com Lática Mikalovic, antes sua namorada, agora autora famosa, e as reflexões sobre tradução, poesia, passado, sentimento vão sustentar uma certa solidão espantosa, tanto no caso do amor quanto na arte da escrita, aí bem pensada desde a arte de traduzir até a arte de criar.
O narrador-tradutor-mediador de histórias e personagem exigente vai levar o leitor em um passeio por tempos e lugares diferentes, trazendo línguas e paisagens de outras cenas; narrador perverso, cínico, acaba colocando o leitor exigente em roda de enjeitados; provoca e alimenta a curiosidade, mas exige muito para facilitar o percurso. É também a narrativa da volta à casa depois de longa viagem, o retorno às origens, ao passado, onde as lembranças viram matéria.
Há capítulos curtos e há “poemas”, há talvez traduções simuladas e há certeza de querer mostrar que a política mais certa, nas artes e na vida, não é a do nacional nem a do estilo: é a do amor. Sujeito contemporâneo, literatura contemporânea, presente e passado condizendo com o fato: a dor de um tal amor louco, do que se perde e do que não se teve, é o que sustenta qualquer literatura, em todas as artes, sem peso de língua ou de estilo.
Não fosse um certo “excesso” de discussão literária e sobre tradução – no romance a grande metáfora da vida e da arte -, seria mesmo um desses romances para ler e tentar formular melhor a idéia do que se tem na nossa literatura. Pensar a literatura digo. E é bem escrito, registre-se aqui, capaz de prender o leitor em reflexões da vida à arte a partir da palavra que dá corpo ao sentimento.
Três traidores e uns outros/Editora Record/176p/R$34,90.
sábado, 23 de abril de 2011
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