sábado, 23 de abril de 2011

Quando esse olho vê: corpo, guerra, dor e erotismo no espetáculo “Fricção”





publicado em 22/04/2011
A tarde, caderno 2+
Milena Britto – Professora adjunta da Universidade Federal da Bahia

O espetáculo “Fricção”, concebido e performatizado pela coreógrafa e dançarina Isaura Tupiniquim, traz à discussão os corpos tensionados por forças trágicas e uma condição da platéia: o voyeurismo.
Com o corpo sendo a passagem de tudo, a técnica de Isaura está ali, aprimorada pela sua trajetória no balé e dança moderna, mas as experiências que deixam o corpo em “estados de” são o que tornam os seus movimentos efetivos, viscerais.
O aspecto conceitual - desenvolvido junto ao filósofo Washington Drummond- revela a profundidade da performer: as referências para esse corpo tensionado em camadas históricas estariam da filosofia à midia; com entradas marcadas pelo erotismo de Bataille, pelos registros de guerras, por uma certa plástica hitleriana, pelo dadaísmo da banda alemã Einstürzende Neubauten, o neosurrealismo de um filme como Eraserhead, de David Lynch e, no centro de tudo, a estética “tecnológica” das máquinas desse tempo de guerras.
Há beleza em seus movimentos de homem-máquina, em seu balé sutil, em seu arquear falsamente desengonçado, o seu gênero que se indefine e se subjetiva ao mesmo tempo. Há dor, solidão, angústia, surpresa, medo.
A iluminação é assinada pelo design de luz Márcio Nonato, artista que tem uma trajetória junto ao grupo pluriartístico Dimenti. Márcio acentua os sentimentos do corpo em foco captando detalhes e deixando-os suspensos, próximos à platéia; por outro lado, desde fora, o corpo em cena e os movimentos agigantam-se.
O voyuerismo selvagem vai sendo atacado e, ao mesmo tempo, recuperado como parte de um processo criativo. O dispositivo de espionar é parte de uma maquiavélica relação entre os sujeitos.
A perversão disso é o que definiria a condição “humana” ou “desumana” do corpo especulado. Especialmente aquele em meio a guerras; as de hoje, brutalmente bélicas ou invisíveis, e, mais atrás, o que aconteceu nos campos de concentração, as marchas espetaculares de exércitos, a dança dos canhões, o balé dos soldados, o sexo desprezado e pervertido, as violações e profanações do corpo, o sangue – ou o leite - derramado em nome da paz: todas as guerras que estão em nossa memória coletiva, toda a versação institucionalizada da História da Moral.
O cenário é mínimo. O figurino tem força nas “próteses” desenhadas por Gaio Matos. O fetiche, o uniforme, a máquina são signos elaborados com pouco, num grande acerto do artista.
A ambientação sonora, operada pela Dj Lívia Losd, joga-nos nas geografias desérticas dos campos de guerras, das prisões, no silêncio espantoso de corpos que desaparecem e ressurgem. Agudamente administra os sentimentos da performer através de uma combinação de efeito musical que exaspera a platéia e conduz os movimentos ajustando-os aos sentidos.
Com a base na música conceitual da banda Einstürzende Neubauten, os efeitos criados são sempre únicos, aventando-se em cada espetáculo outra possibilidade de dizer o mesmo. Os vidros, os metais, as correntes que se arrastam, o eco de batidas secas ou desordenadas, a ópera, o silêncio... sob a música, corpo e mente são prisioneiros da experiência, não sem resistência. Estamos friccionando e friccionados e a Dj capta bem esse processo no palco e fora dele.
As transições de cenas são também de sentimento e de experiência. O corpo pode ser máquina, mas ele vai se descobrir humano e outra vez se converter em máquina. Camadas de processos históricos.
Isaura Tupiniquim traz para a arte contemporânea da terra diferença com profundidade. Arrisca bastante, aliás, o risco tem sido a sua marca nas performances assinadas por ela, que pesquisa o corpo em seus entraves contemporâneos, nessas tensões onipresentes em nosso tempo. Ela recusa-se à paz e à beleza contemplativa, exaspera-se, convulsiona-se em cena. Ela transita nos depósitos de restos de corpos modificados pela história dos conflitos, metáfora para aquilo que restou de nosso sonho de progresso.
Alguns poucos momentos saíram do eixo, em transições muito longas, uma marca do espetáculo. Algumas vezes, um movimento transicional tarda muito e se repete, retirando um pouco aquilo que seria parte da mesma história: a surpresa. Um corpo pode ser transformado também de maneira fulminante, como um braço que se vai com uma bomba ou um orgasmo que faz o rosto retorcer-se em segundos.Por outro lado, alguns momentos desses são a jóia da cena.
Irônica, a artista concede um momento de beleza plástica mergulhada em audácia: compõe com fragmentos de sentido, iluminação e forma, uma imagem viva, um quadro Batailliano - aliás, a “História do Olho” está presente numa referência plástica na cena final do leite. O espetáculo tem nos dois “finais” um ápice contraditório: enquanto uma imagem viva de seu corpo se ergue pelo sentido da grande ironia, um derrière virado à platéia nos largos segundos que a iluminação eterniza, o ato rege a liberdade daquele ser recém autônomo; e, para encerrar o triunfo de ter deixado o expectador preso até ali, de presente para a platéia uma prova de seu próprio veneno, imagens trágicas, fechando o ciclo daquele acordo: o voyeur que invade a privacidade, que consome as guerras, as cenas midiáticas das tragédias é o mesmo que espiona feliz e excitado o sexo do outro pela fechadura. Perversão na dor e no erotismo. Bom espetáculo!

Controle remoto e Cyberfuturo

Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba

Há alguns anos, Lolita Pille chocava os leitores com seu romance “Hell – Paris 75016”, no qual expunha uma juventude parisiense fútil, existindo apenas para o sexo, as drogas e o consumo de marcas luxuosas. O livro virou filme e a autora, então muito jovem, ficou bastante conhecida internacionalmente. Recentemente, Lolita Pille deu uma virada de estilo e chegou com uma espécie de thriller que envereda pelo estilo cyberpunk, o romance “Cidade da penumbra”.
O que podia ser interessante no livro termina por fragilizá-lo: as muitas referências e retomadas de clássicos da literatura noir, cyberpunk e futurista terminam por dificultar o acompanhamento da história, a qual situa-se num tempo muito além do nosso já tecnológico “agora”.
Num futuro próximo, a “hiperdemocracia” Clear-World é o único poder. O céu escureceu, os gases poluentes não deixam passar a luz solar e os cidadãos são obrigados a viver da luz artificial projetada com recursos tecnológicos para imitar as mudanças do dia. Assim, dia e noite são convenções que - como diz uma personagem do romance - continuam atuando no cérebro humano: ainda que a noite não exista, é naquele artificial momento que os sórdidos desejos e ações saem à tona.
Há situações críticas num mundo onde a realidade artificial é levada ao extremo: juventude e beleza não são direitos, são deveres e caso alguém recuse a regra é “deportado” para áreas fora da cidade. Ali juntam-se os párias, os feios, os ineptos.
O suicídio é proibido e “monitorado” por aparatos tecnológicos, como um “Rastreador”, gerenciado pelo órgão “Preventiva Suicídio”, uma espécie de polícia secreta. É nesse serviço que trabalha Syd Paradine, um policial alcoólatra e taciturno, que percebe todo o jogo e que vive amargurado por sentir-se impotente naquela realidade aparentemente perfeita.
É essa personagem que vai começar uma investigação para evidenciar o que está por trás do suicídio do obeso Parker. Aliás, as primeiras páginas, narradas pelo obeso suicida, são as melhores do livro. Escritas com apuro literário e uma cáustica e crua sinceridade, fazem o leitor navegar numa espécie de limbo à espera da salvação.
É impossível não se debruçar sobre as muitas referências que Lolita usa para construir “Cidade da Penumbra”: o céu negro é uma reminiscência aos irmãos Wachowski e a Alex Proyas (há ali Matrix, Dark City); a felicidade obrigatória está no RPG Paranóia; os párias que ficam fora da cidade vão lembrar “Fuga de Nova York” de John Carpenter. Há ainda referências a clássicos da ficção científica como Adous Huxley, William Gibson (fundador do Ciberpunk) e outros.
É impossível não ter o de javu. A autora recupera bem as imagens; a descrição é bem detalhada do mundo onde o “banco dos mortos” é pior do que a realidade, as drogas são legais e anestésicos para a guerra e as crianças menores de 12 anos podem ser compradas e usadas como bibelôs decorativos ou brinquedos sexuais humanos. Nestas páginas é que a escrita de Pille é mais elaborada, atraindo o leitor, apesar do uso de um vocabulário trash desnecessariamente jogado aqui e ali que não funciona bem.
À medida que a história avança, contudo, fica visível que Lolita Pille não sabe para onde ir. O suicídio de Colin Parker se perde na história, não mais sendo retomadas as primeiras páginas do livro.
As personagens, em sua maioria, são sem consistência e florescem a cada página. Há superabundância e a escrita falha pelo acúmulo de metáforas grotescas que deixam o texto, no mínimo, confuso.
Apesar da tentativa e de momentos muito interessantes no romance, Pille não consegue fazer “Cidade da Penumbra” sustentar-se em sua própria estrutura. Ela, entretanto, consegue, e bem, plantar no leitor uma certa suspeita desse futuro que se aproxima.
Tradução Julio Bandeira/Intrínseca/304 páginas/R$29,90.

O amor no “lado B” da cidade

Publicado no A tarde, caderno 2+

Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba




A literatura beat tem influenciado muitos escritores, particularmente, àqueles que enveredam por uma contestação da ordem burguesa a partir da agressividade da linguagem, dos temas abjetos, apodrecidos, escusos. Dentre os chamados “beats”, Charles Bukowski – que segundo alguns críticos não deveria estar entre os beats – é o mais ácido, o intransigente com relação à linguagem, ao estilo, aos temas. Impossível não pensar nele quando lemos algo duro, colhido dessa realidade sórdida comum a todas as épocas, países, cidades: a realidade dos becos, vielas, bares, prostíbulos.
Ao cair nas minhas mãos o livro de contos “Elas etc” assinado simplesmente por Tico, confesso que tive minhas dúvidas se iria gostar, apesar de ter uma apresentação assinada pelo Ferréz, que também foi o primeiro a publicar Tico na coletânea “Literatura marginal” em 2004. Mas isso tudo – minha desconfiança e suspeita – durou até eu sentar-me a ler o livro. Tinha algo de Bukowski ali, mas tinha, sem dúvida, uma pegada própria também.
Logo depois de passear pelas primeiras páginas, “desconfiei” que sairia dele abalada de alguma maneira. Para iniciar aqui uma conversa breve sobre literatura – pensando no tal Tico – tento não me deixar cair na armadilha de quem é o autor, tratando de ler a obra como algo independente.
Mas isso não é de todo possível. Não apenas por nossa tradição de autoridade da escrita, mas também porque a palavra pode ser assumidamente política (sim, podemos ir para Benjamin, Barthes, Foucault, Bakhtin, sair da análise do discurso, da estética literária e até da psicanálise) mas uma coisa é certa: no fundo queremos saber quem foi que escreveu aquilo e se possível até ver uma foto do sujeito. Então, sobre Tico, tendo ele sido descrito como anarquista, não foi possível livrar-me da informação e me via entre uma página e outra pensando nisso. Entre anarquia e favelas, esse Tico dá umas pauladas das boas, deixando arder as palavras sob nossos olhos, mas também deixando um rastro de delicadeza que comove.
Não, o leitor não tem a sensação de estar diante da Tv com os programas sensacionalistas sobre favelas e bandidos. É como se, ao contrário, todas as armadilhas que nos afastam dessa realidade comovente fossem arrancadas: fica apenas o leitor e aquele mundo escondido, temido por todos.
Os contos de “Elas etc” tem o protagonismo dado às mulheres, mas tem muito mais: um universo de escritores, referências literárias colocadas como pistas do imaginário poético do autor, cenários densos e, sobretudo, tem uma ligação intensa com a realidade das periferias urbanas. As histórias são construídas colocando-se as personagens num frágil fio que pende entre a vida e a morte, já que são partes desse “lado B” da cidade. Os contos são dos que marcam o leitor tanto pela narrativa precisa quanto pela tenacidade do envolvimento de quem lê com os sentimentos das personagens.
Há histórias de amor e morte em barracos nas quebradas. Em um conto, a droga, o cigarro, o sexo, o vazio de esperanças misturado à persistência de sentidos, deixam a sensação ambígua da impossibilidade de se evitar as tragédias e ao mesmo tempo a luta absurda pela emergência da vida. Depois do coito, no conto “Paixão explosiva”, o casal conversa, o homem fala de Byron, a mulher, até então quase anônima para ele, mostra a ternura e a curiosidade com a vida. O cenário é desmantelado, feio como se imagina um beco qualquer, um barraco qualquer, mas as imagens chegam a ser poéticas. Nada adianta, contudo: a tragédia impera mesmo sem balas e perseguição da polícia: a explosão do barraco pelo cigarro aceso da mulher dá um desfecho onde a surpresa é a “surpresa” e a dor do homem: há mais vida e mais sentimento do que se imagina por trás desses mundos outros.
“Álbum de retratos” é diferente, vertiginoso, ritmo frenético com uma espécie de transposição catártica. Um barraco, onde uma quadrilha se recupera de um assalto, é invadido por policiais que acabam exterminando o grupo. Duas personagens sobrevivem e sente-se a dor do bandido desesperado porque vê o álbum de sua família inexistente ser queimado: a fantasia de uma foto de uma família feliz importava mais do que as jóias roubadas e foi por isso apenas que houve assassinato das vítimas, o roubo era da ilusão da família e não do dinheiro.
A família volta outra vez no conto “A bela que abala libido e o almocreve”, no qual o sujeito recém saído da prisão assiste a morte de sua mãe prostituta pela Tv, atingida por uma bala perdida saída da arma de sua amante, uma policial. Ironia maior: ele havia tentado, sem saber de quem se tratava, dar à velha prostituta um buquê de flores. São muitos os contos, alguns muito mais interessantes do que outros, sobretudo com relação à narrativa e à linguagem, que oscilam.
A linguagem dos contos é peculiar: coloquial, explícita, direta, imperfeita, mas, também, com vestígios de erudição, vocabulário rebuscado que aparece aqui e ali de propósito. Eu achava, a princípio, que isso quebrava a força apelativa da representação daquela realidade, mas acaba sendo tanto um ponto de ironia como uma peleja com absurdos cruzamentos, com essa malha de tensão na que se vive hoje, os limites ou o limiar de pertencer ou não a um mundo.
Mas nada ali enfraquece o valor da obra, a qualidade da escrita. É “literatura A” mostrando o “lado B”. Tem vida daquele lado também. E o escancarado de lá é mais terno do que se supõe o lado de cá. Literatura dissidente marcando um tempo, uma geografia, uma política.
Editora Edições inteligentes/111p/$20,00

Mecanismos internos da escrita

Publicado no A tarde




O escritor J.M Coetzee, que nasceu na África do Sul e tornou-se cidadão austríaco, já ganhou um Nobel da literatura e muitos outros prêmios importantes; porém, a despeito disso, sua fama entre os intelectuais vem da forma como encara o seu papel de escritor e o lugar da literatura no mundo, no curso da história política e em sua condição de arte.
O seu livro de ensaios “Mecanismos internos” revela uma posição definida por si e para si como a de um escritor “consequente da leitura”. Para ele, a escrita só é possível porque ele lê; essa é a única forma para ele escrever e, mais ainda, a única que possibilita que a escrita seja algo próprio, algo em si mesma, já que ela resulta do exercício de leitura e de seu profundo entendimento.
A sua ficção é produto das reflexões feitas a partir de escritores ocidentais e essa escrita o põe em diálogo com o canônico e o não canônico de seu tempo, respeitando o lugar da “memória literária”, da tradição, do repertório.
Esse “ler” significa estabelecer forças e valores para determinados autores, considerando os mecanismos internos de suas produções, mas sem deixar de fora o lugar do sujeito histórico que é o próprio autor. Sendo ele próprio um escritor que localiza boa parte de sua obra a partir de um país pós-colonial e subdesenvolvido, esse aspecto adquire ainda mais relevância em seu lugar de crítico.
São muitas as vezes em que ele resgata o autor para ajustar a leitura que faz da obra. Quando analisa narradores na ficção ocidental, como no ensaio sobre Sebald, por exemplo, o faz destacando na obra a intersecção e a dimensão do sujeito histórico.
Nos vinte e um ensaios do livro, Coetezee exercita o seu olhar a partir das questões que permearam os textos escolhidos para resenhar e defende uma abordagem política vinculada às questões estéticas.
É assim que J.M Coetzee vai discutir escritores cujas obras circularam ou produziram-se a partir de contextos político-históricos, por exemplo o Holocausto, como se vê no ensaio intitulado “Paul Celan e seus tradutores” – nesse ensaio, as questões anti-semitistas são problematizadas nas relações entre tradutores e autores, bem como vai dimensionar o lugar de uma nova proposta estética, o que vemos quando ele discute Italo Svevo. Esse ensaio, em particular, serve para ver de que maneira o excentrismo do autor italiano e a sua “forma” moderna repercurtem na própria estrutura da produção ficcional de Coetzee, sendo mesmo uma espécie de mecanismo para o seu projeto geral de escritor.
Um papel ético e estético importante que, segundo ele, a literatura desempenha no nosso tempo é colocar a condição humana no centro da discussão. Não é à toa que ele dedica grande espaço a Italo Svevo, Sándor Márai e Walter Benjamin.
Ao abordar cada obra que se propõe a ler, Coetzee cerca-se de leituras que vão localizando, discutindo e questionando desde as diferentes razões pleiteadas por cada autor para justificar determinadas posições, até às escapadas que a psicanálise pode explicar - ou aponta o próprio exercício psicoanalítico dentro da obra. É assim no ensaio sobre Robert Walser cuja biografia inserida no ensaio, juntamente com o aspecto sexual destacado da personagem, leva-o ao percurso interno de construção do texto desse autor que, mesmo sem ser daqueles politicamente envolvidos num propósito, provoca uma ruptura e uma reconfiguração de direção a partir do lugar do desejo – ou, melhor dizendo, do desejo da personagem.
Depois de ler a obra ficcional de J.M Coetzee, o leitor talvez não espere dele um papel de resenhista ideal, dado o aspecto oblíquo de sua obra, mas é justamente o contrário: o lugar de crítico e ensaísta traz um texto absorvente e agudo. Esse “outro” texto, produto da razão e da erudição do autor, bem como de sua atenção ímpar à condição humana nos tempos de conflitos, guerras e desequilíbrios, revela um escritor que vincula a sua obra a sua condição de leitor do mundo, à condição de homem e de sujeito numa história em curso.
Mecanismos internos/trad. Sergio Flaksman/359p/ R$39,00

Enquanto dura um Jazz

Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba
millenabritto@hotmail.com

Foi invocando os ecos da "geração perdida"que me inclinei a ler o premiado “Alabama Song”, do francês Gilles Leroy.
Das sombrias às mais ternas experiências de se escutar um bom jazz ou se ler um bom livro, só ao final se pode saber o saldo do ato. Neste caso, entrar na intimidade de Scott Fitzgerald, para o bem e para o mal, não possibilita ao leitor o gosto prazenteiro do bis.
Há quem pense que tentar ultrapassar os limites que separam a biografia da ficção é um exercício arriscado. A questão se complica ainda mais quando, como é o caso, a história fez do personagem mito e símbolo de toda uma época. É isso o que acontece com “Alabama Song”, romance no qual Leroy recria a figura de Zelda Sayre e sua atormentada existência junto àquele que foi seu marido, o romancista americano Francis Scott Fitzgerald.
Pertencentes à chamada “geração perdida” – termo cunhado por Gertrude Stein para referir-se aos jovens escritores norte-americanos nascidos no período de entreguerras – Zelda Sayre e Scott chegaram a converter-se em um dos casais mais famosos de Nova York.
“Alabama Song” é um relato cru, escrito em primeira pessoa, no qual Zelda – na idade de quarenta anos e reclusa em um hospital psiquiátrico – rememora seu passado e sua mal sucedida vida conjugal junto ao escritor desde a sua juventude.
No livro, Gilles Leroy desenha Zelda como uma mulher de caráter frágil, mas independente que, além de ser dotada de um grande talento para a escrita e a pintura, viveu, tanto no âmbito pessoal quanto no artístico, submetida ao cruel autoritarismo de seu marido, ciumento de sua criatividade e de seu temperamento apaixonado e vivo, distanciado das convenções da época.
Através da voz desgarrada de Zelda, Leroy desnuda sem pudores a figura de Scott Fitzgerald; despoja-o de seus elegantes trajes para descrever-nos um homem arrogante e degradado pelo álcool, cuja vida pessoal, segundo o romance, nem sempre soube estar a altura de seus êxitos profissionais e da imagem de refinado sedutor que projetava a seu redor.
Junto ao casal, pelas páginas do romance, desfilam outros autores com os quais Zelda e Scott mantiveram amizade, como Gertrude Stein, Hemingway (camuflado na história sob o nome de Lewis), John Dos Passos e Maxwell.
“Alabama Song” é um tratado em defesa de Zelda, no qual Leroy – em suas próprias palavras – pretende reivindicar sua figura e libertá-la dos prejuízos que, erroneamente, grande parte dos biógrafos de Scott Fitzgerald tem contribuído para difundir sobre ela. Segundo o autor, o famoso escritor não duvidou em nenhum momento de apoderar-se de alguns textos e artigos de sua mulher com a desculpa de que sob seu nome receberiam melhor acolhida, além daqueles que teria maquiavelicamente extraído dos diários e da correspondência privada de Zelda para elaborar seus romances.
Baseado em numerosos documentos disponíveis que reuniu sobre o casal, Gilles Leroy devolve a Zelda – sob a forma de um imenso monólogo a que o livro recorre do começo ao fim – o dom da palavra.
Durante a sua reclusão no hospital, Zelda se aferra a suas recordações numa tentativa desesperada de manter a lucidez e recuperar, de alguma forma, o sentimento de controle sobre a sua vida. Através da escrita, seu relato, entrelaçado aos fios dos episódios que vão aflorando livremente de sua memória – seguindo uma ordem cronológica – irá adquirindo o caráter de um doloroso ato de expiação. Ainda que pese a terrível carga emocional que acompanha muitas de suas recordações, sua voz, longe de fraquejar, amadurece e se fortalece com a dor, consciente de que só enfrentando com coragem as passagens mais obscuras de sua memória, é possível ganhar a batalha sobre a loucura e o desespero.
Com um estilo pulsante e irônico, que alterna passagens de grande sensibilidade poética com outras dominadas por um abrupto realismo – beirando até o escatológico – Leroy consegue manter o interesse e a tensão do leitor ao longo de toda a narrativa, cavando com profundidade os conflitos internos da mulher que foi musa e inspiradora do autor americano.
Sem dúvida, por muito que o romance resulte excelente, tanto em sua construção quanto no perfil que faz das personagens, através de sua leitura é inevitável se perguntar – como acontece sempre que nos deparamos com uma obra que conjuga elementos biográficos com fictícios – o que há de verdade e o que há de lenda atrás das pistas em que Leroy se baseou para construir seu romance?
De fato, depois da publicação, não foram poucos os protestos daqueles que consideram que Gilles Leroy traz em seu livro uma imagem excessivamente crítica de Fitzgerald; outras que dizem que ele foi muito longe em suas revelações, como o momento em que Lewis, alter ego de Hemingway , é flagrado em uma situação comprometedora, sobretudo pela evidência homossexual, junto a Scott.
Seja como seja, o romance, consegue deixar no leitor essa marca forte de Zelda e, sem dúvida, ao terminar a última página, como se toda a vida durasse um Jazz, há que se esquecer do “replay” e sair com Zelda – e Scott – atrás de alguma coisa perdida. Um geração perdida.

Alabama song/Record/207p.

Poesia dot com dot Bahia

Milena Britto – professora do Instituto de Letras da Ufba
millenabritto@hotmail.com


Nilson Galvão e Mônica Menezes possuem em comum algumas coisas: são poetas, blogueiros e publicaram pela coleção Cartas baianas. Os estilos, entretanto, são distintos, possuindo em comum a certeza de usarem a poesia para dar conta de um mundo grande que os acolhe e do mundo outro que habitam de verdade.
De ambos, coincidentemente, eu conhecia uma que outra poesia por fuçar blogs vez em quando, sempre pensando em arranjar tempo para escever sobre escritores que começaram com o blog.
Ambos utilizam os respectivos blogs mais como suporte e lugar de interação com o público do que como “linguagem”, ainda que os dois, cada um em seu estilo, algumas vezes insiram “imagens” para ilustrar os seus posts na blogosfera. Na transposição para livro, o trabalho não remete, em sua estrutura - versos, linguagem ou ritmo - ao suporte virtual.
“Caixa Preta”, de Galvão, que recebeu menção honrosa do projeto arte e cultura do banco Capital, é um conjunto de poemas que se move, coerentemente, pelas inquietas relações homem-mundo-vida-existência-morte-amor. Pode-se ver algo, de algum modo, nietzschiano por ali, além de algumas diretas referências, como à poesia de Walt Whitman ou à música de Billie Holiday.
Os versos possuem um sujeito lírico que assume a voz de todos nós, refletindo esse lugar do homem que pensa, sente e se inquieta: “Sou o veículo dessa história/qualquer em meu coração/sem prumo.O destino se esqueceu/de mim”.
Os poemas possuem distintas formas, a maioria sendo espécies de narrativas, pontuados, versos sem rimas, com quebras de ritmo interessantes, como se o corpo fosse tão convidado a “sentir” os poemas quanto, em maior intensidade, o pensamento: “O mundo gira, o menino chora:/dói o menino, onde mesmo será/que ele sente essa falta, e se sente/essa falta quem sabe girar pra saber/que ela dói,que ela/ dói mas é breve,/tão breve quanto o mundo que chora.”
O lirismo dos poemas nos chega colado às palavras escolhidas. Poesia para pensar e sentir, profundamente, as coisas, e dar às coisas seu sentido perdido. É boa poesia - para pensar ou para sentir.
Em “estranhamentos”, que também recebeu menção honrosa do banco Capital, Mônica Menezes nos coloca diante de um eu-lírico romântico, sensível, que utiliza a memória como “lugar” de encontro, expondo o seu sentir e compartilhando suas surpresas, suas dores, tristezas, amores, e oferecendo sempre um certo espanto, ou “estranhamento”: “amado, jamais serei a tua Dora Diamant/simplesmente porque sou outra mulher/e tu és outro homem/não sei cantar na língua sagrada/e nunca sonhamos com Tel Aviv/ no entanto desejo,/como a moça judia,/acolher-te o derradeiro gesto/ e talvez o meu grito/também dissipe o eco/da última oração”.
Com tons de Clarice, Adélia Prado e até Leminski, Mônica vai brincando, ora concisa, ora farta, com a relação entre sentimento e poesia, deixando-nos um rastro forte de memória - quase nossa de tanto que é íntima: “Meu avô/é uma cadeira de balanço/vazia”.
E oferece ainda uma marca feminina aguda, explorando todos os espaços de ser um sujeito poético feminino; e farto vocabulário ligado à natureza, sem medo ou pudores: “amanheceu/e o meu amor transbordou/chovi chovi chovi/uma forte chuva de amor”.
Os poetas-blogueiros se revelam, em seus livros, sérios em suas buscas, experimentando menos e trabalhando mais no sentido, preocupados em deixar a sua poesia dividir sentimentos, dúvidas, certezas, angústias e espanto. Eu espero vê-los em muito mais páginas, esquinas e “posts” na Bahia (dot com).
Estranhamentos /Mônica Menezes/ P55
/48p e Caixa Preta/ Nilson Galvão/P55/48 p.

Da janela se vê o Bósforo: a pintura com palavras de Pamuk

Publicado no A tarde
Milena Britto – Professora do Instituto de letras da Ufba
millenabritto@hotmail.com


“A literatura não permite a um escritor fazer de conta que salvou o mundo; no máximo, ela lhe dá a oportunidade de salvar um dia de cada vez.”
Quando terminei de ler “Outras cores – ensaios e um conto”, pus-me a pensar que tudo o que eu sei de escritores e escritura, leitores e leitura, é algo tão minúsculo que todos os anos de esforço pareceriam em vão. Contudo, ao invés de sentimento pesado, foi uma alegria constatar isso e saber que, para a vida toda, esperam-me descobertas que as palavras guardam e que só em um tempo próprio é que elas se farão matéria única.
Orham Pamuk, escritor turco que ganhou o Nobel em 2006, conseguiu compor uma obra imprescindível para aqueles que se dedicam à compreensão da força que a literatura tem para a vida. No livro, não há apenas uma escrita forte e bela. Muito menos é só o reflexo de um homem sensível, agudo e erudito. O livro confere os atributos anteriores adicionados à paixão de um homem pela escrita até o último grau; disposto a pegar todas as oportunidades para escrever com lucidez e com um poder de entrega tão grande que contagia o leitor.
Em seu livro, os escritos vão desde anotações sobre o cotidiano, entrevistas, contos, até ensaios e reflexões sobre política, análises literárias, escritos sobre cultura, guerras, disputas entre oriente e ocidente, terremoto, pobreza.Tudo sem deixar, em uma linha sequer, que desapareça o escritor e um leitor implícito, numa relação absolutamente sincera e assumida.
Em “Viver e preocupar-se”, o mote é a relação entre o autor e sua filha Rüya, descrita a partir de uma saída à praia, ou da contemplação do velocípede da menina no meio da madrugada abandonado em um solitário canto da casa. As palavras simples vão dando conta não apenas do profundo amor pela filha, mas de poder entender as pequenas coisas desta relação como uma forma nova de ver o mundo e de compreender-se nesse mundo. Orhan vai acrescentando a isso detalhes de vida externa, como nas duas crônicas excelentes sobre os terremotos perto de Istambul que fecham essa parte.
Nas duas crônicas, a dor por tanta desgraça é pontuada pelo olhar de Pamuk, que encontra as mínimas expressões da realidade que vão fortalecer a prosa que se estende pelos diálogos, críticas, dúvidas e emoções.
Orhan, em “Livros e leitura”, revela suas impressões e descobertas de leitor; comenta Victor Hugo, Dostoievski, Vargas Llosa, Arthur Miller, Thomas Bernhard, André Gide, Joyce,Virginia Woolf e uma série de escritores que passaram por seu caminho.
A condição de escritor localizado no mapa não faz da leitura de Pamuk um jogo contemplativo para nós, leitores ocidentais. Suas preocupações de homem interessado por sua sociedade, sua política e sua cultura, tão duras como deve ser para quem vive no meio do caminho, logram prender o leitor para além de conjecturas como “cultura hegemônica” versus “cultura marginal”. Ele confessa admirar o “orientalismo”, de Edward Said, mas suas observações desde aquele lugar acrescentam muitíssimo às análises.
Pamuk, que queria ser pintor quando criança, é um mestre do detalhe e em “Imagens e textos” ele revela toda essa capacidade, deixando-nos com análises magníficas, como quadros pintados com palavras, conforme sua própria definição de escrita. E repensa-se todo o tempo como escritor e como cidadão, basta ler o capítulo “Política, Europa e outros problemas de sermos quem somos” para ver.
Em “Meus livros são minha vida”, ele fala da chegada de Arthur Miller a Istambul; critica a política repressiva turca, revela-nos segredos de suas leituras, emociona enquanto chama para o diálogo entre culturas; e o belo é que, entre esses temas, descreve-nos sua mirada da cidade desde a janela de um táxi e, vez por outra, reacende-nos a imagem que ele mais gosta: a de ver o Bósforo no fim de tarde desde seu apartamento.
“Outras cidades, outras civilizações” encerra o volume e, posso dizer, com essa mistura rara entre o cotidiano e o mais intelectual dos temas que se vê em todo o livro, Orhan Pamuk logra comover-nos e tocar esse lugar da vida que tão esquivo e tão difícil de nomear é; isso que talvez seja apenas possível de juntar de forma mágica e viva na literatura. Como a desse escritor.

Outras cores –ensaios e um conto/Companhia das letras/trad. Berilo Vargas/477p./$R 57,00.

Ser ou não ser literatura: eis aqui a não questão

Publicado no A tarde

Fazer os jovens lerem pode não ser tarefa fácil; dizem que fazê-los ler, então, escritores antigos é missão quase impossível. Isso parece não ser verdade quando se vê o sucesso da escritora Paula Mastroberti na série “Reversões”, que tem a “Angústia de Fausto”, “Heroísmo de Quixote (premiado em segundo lugar com o Jabuti de 2006 na categoria Juvenil), “Retorno de Ulisses” e agora “Loucura de Hamlet”, que encerra a série.
O truque é velho: adaptar para os dias de hoje a história de “muitos ontens atrás”. Mas as ferramentas e a engenharia visual são novíssimas: encarar as páginas, a capa, o pé de página, as ilustrações como parte do “produto”; dar a ele ainda mais “concretude” com cenas de filmes, jogos e o que mais der cara, cor e textura ao texto literário. Mais diretamente dizendo, em alguns casos já não é o texto o que importa, mas todas essas midiáticas atrações. O que, no final, sobra de Shakespeare ali? Os jovens estariam lendo Shakespeare através de Paula Mastroberti? Deixemos disso agora. O que está em jogo é que um dos textos shakespeareanos mais estudados por filósofos, psicoanalistas, lingüistas, historiadores, retóricos, - “Hamlet” - vira um produto acessível aos que não costumam ler.
“Loucura de Hamlet” é um livro que mantém o argumento do texto de Shakespeare, mas as adaptações são para a situação atual imediata. O livro é trabalhado visualmente para encher de vontade os olhos habituados ao movimento, ao fragmento, ao império do visual. As colagens e desenhos compõem as personagens e os diálogos como se fossem uma obra híbrida, quadrinhos e livro.
Os textos são “montados” com recortes e simulação de diário e de arquivo de computador; tem notas de rodapé como parte do texto, explicando para o leitor as elipses mais “herméticas”, e “O retorno de Jedi” entra como filme, como jogo e como “personagem” da aventura. “Jedi” é o fantasma do Hamlet-Tomás, aquele que chega como seu pai pedindo vingança de sua morte.
Da “história” fica tanto que quase temos um certo incômodo e ímpeto de defender para o fantasma de William Shakespeare os direitos autorais do bem sucedido empreendimento. Alguns nomes são mantidos, Ofélia, Horácio, Polônio, Gertrudes, etc.
Dois irmãos gêmeos crescem numa favela; um se dedica aos estudos como tábua de salvação do ambiente violento, o outro se deixa seduzir pelo mundo do crime e vira um traficante poderoso. O irmão bandido, Antônio, casa com Gertrudes e tem um filho, Tomás.
A autora mantém personagens e outras são acrescentadas para dar maior veracidade à história - em primeira pessoa - narrada por uma personagem que nada tem a ver com a tragédia, sendo quase que assumidamente a figura do mediador.
Cláudio já não mora na favela quando seu irmão é assassinado. Casa-se com a cunhada e leva mãe e filho para um condomínio de classe média. Político “popular”, Cláudio conta com seu parceiro, Polônio, pai de Ofélia e Laertes, que é assassinado por engano no lugar de Cláudio.
Tomás, apaixonado por Ofélia, desiste dela ao vê-la envolver-se com drogas; finge-se de louco e planeja a morte do tio para vingar-se do pai, que julga ter sido assassinado por Cláudio, e mantém uma relação ambígua com a mãe, que parece cúmplice de Cláudio. Como na versão de Shakespeare, nunca fica claro o envolvimento do casal com o crime, embora se possa entrar no delírio do filho.
Ofélia se envolve com drogas e prostituição, suicida-se na piscina depois de matar o irmão a facadas quando se recupera de uma overdose. Tomás acaba se debatendo com a culpa, no limiar de sua loucura – fingida ou não. A disputa entre o amor e o ódio é chama inextinguível.
A tragédia toda é convincente nos dias atuais – já o cinema fez isso algumas vezes com vários dos textos de Shakespeare, de Romeu e Julieta a Otelo passando por Hamlet - e há os cruzamentos e confusão de estado mental de Tomás (evidenciado por interferência do “mediador”) mantido de forma inteligente.
Entretanto, sem nem perder tempo tentando dizer se o livro é literatura ou produto de consumo, uma coisa é certa: os jovens não estarão lendo Shakespeare – se bem que quem sabe o quanto de Mastroberti estariam lendo eles.
O fato é que Shakespeare é muito mais do que um argumento. Shakespeare é a linguagem, são as metáforas, são os ricos solilóquios das personagens, é estrutura dramática aristotélica; Shakespeare é Shakespeare por algo muito além de colagens e artifícios visuais, é sedução na junção magnífíca e sedutora de linguagem, ritmo, conteúdo, estilo; são mistérios escondidos dentro do texto. Os jovens vão ler – e vão gostar de como essa história é contada - mas, deixemos claro, nada disso vai suprimir a magistral aventura outra, a de ler e degustar um texto de Shakespeare com o sabor daquele.
É, portanto, carta fora do baralho entrar na discussão de ser ou não literatura; “ser ou não ser” está fora de questão. O que está ali é uma outra coisa. Esta, sem medo algum de dizer, fruto de nosso tempo e das nossas tecnologias. Cabe a cada um decidir como se satisfaz. Eu, certamente, prefiro dar a Shakespeare o que é de Shakespeare.

Paula Mastroberti/Rocco/136p./R$ 41, 50.

De amores e livros

Publicado no A tarde, caderno 2

O mais novo romance de Marcelo Backes, “Três traidores e uns outros”, vem acrescentar à literatura contemporânea matizes de um tempo cruzado.Como parece, a literatura, coletar as tendências, as idéias, a filosofia, os modos de viver de uma época, é possível traçar, na produção literária atual, caminhos que se repetem e se configuram como marcas dessa escrita: a literatura nacional vai se distendendo e se assomando a outras geografias, outras paisagens, outras vozes. É a geografia de muitos lugares dando conta da intimidade de sujeitos. Do sujeito brasileiro.
Assim como outros escritores dessa geração, o tradutor, crítico e romancista joga com os percursos globalizados da geografia, nesse momento capitalista de emoções perdidas. Dinamarca, Alemanha, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul são alguns dos lugares que vão surgir como parte da paisagem, que não apenas e não só no espaço físico se pode observar, mas também na língua, no passado reconstruído, nas histórias soltas e dispersas das viagens recolhidas, nos autores citados.
Passado e presente se vertem de força convergente no romance, que aborda o amor, o sentimento de perda e de espanto diante da dor das paixões – causadora de tragédias grandes -, enquanto se coloca a serviço de explorar com apuro a arte de narrar. Basicamente, é um romance que explora o amor como drama do sujeito contemporâneo - revelando-o, como dito na orelha, medieval nesse aspecto, ainda que inserido no tempo da velocidade e da tecnologia - e as formas de se narrar depois de uma história grande de tradição literária ocidental.
O narrador, um tradutor – como o autor, nessa “autoficção” de brinquedo e de verdade - vai experimentar narrar de dentro e de fora de situações, deixando que suas próprias vivências sentimentais orientem e se mesclem a outras, quando passa a ser o tradutor das sessões de psicoanálise de um empresário alemão ou quando se “envolve” na narração do drama de Toz, personagem que não escapa à armadilha de uma mãe freudianamente eficiente: tímido, sem conseguir namorar e ameaçado pela mãe de perdê-la para a morte caso viesse a se casar, Toz sucumbe ao caminho narrativo psicanalítico: enforca-se...
Às voltas com a sua própria história, o “tradutor-narrador” vai se reencontrar com Lática Mikalovic, antes sua namorada, agora autora famosa, e as reflexões sobre tradução, poesia, passado, sentimento vão sustentar uma certa solidão espantosa, tanto no caso do amor quanto na arte da escrita, aí bem pensada desde a arte de traduzir até a arte de criar.
O narrador-tradutor-mediador de histórias e personagem exigente vai levar o leitor em um passeio por tempos e lugares diferentes, trazendo línguas e paisagens de outras cenas; narrador perverso, cínico, acaba colocando o leitor exigente em roda de enjeitados; provoca e alimenta a curiosidade, mas exige muito para facilitar o percurso. É também a narrativa da volta à casa depois de longa viagem, o retorno às origens, ao passado, onde as lembranças viram matéria.
Há capítulos curtos e há “poemas”, há talvez traduções simuladas e há certeza de querer mostrar que a política mais certa, nas artes e na vida, não é a do nacional nem a do estilo: é a do amor. Sujeito contemporâneo, literatura contemporânea, presente e passado condizendo com o fato: a dor de um tal amor louco, do que se perde e do que não se teve, é o que sustenta qualquer literatura, em todas as artes, sem peso de língua ou de estilo.
Não fosse um certo “excesso” de discussão literária e sobre tradução – no romance a grande metáfora da vida e da arte -, seria mesmo um desses romances para ler e tentar formular melhor a idéia do que se tem na nossa literatura. Pensar a literatura digo. E é bem escrito, registre-se aqui, capaz de prender o leitor em reflexões da vida à arte a partir da palavra que dá corpo ao sentimento.

Três traidores e uns outros/Editora Record/176p/R$34,90.

Por um erro: A América de Vespúcio

Publicado no A tarde, caderno 2


Quando o historiador e cartógrafo britânico Felipe Fernández-Armesto, a propósito de investigar os lapsos da história de Américo Vespúcio, se propôs a responder à pergunta “quem foi aquele mago de palavras e até onde ele de fato foi?” acertava o caminho que o conduziria a uma bem sucedida biografia daquele que ficou famoso apenas por ser um arguto e brilhante “mentiroso sobre si mesmo”– que bem sabia o valor que possuíam as palavras para a posteridade.
Armesto escreveu um livro cativante; não apenas consegue documentar as informações ou destacar a improbabilidade delas, como se coloca na posição de leitor daquele tempo, considerando o contexto, mostrando com humor, elegância, e fina ironia, de que modo a história conseguiu ser “vítima” de um grande embuste.
Américo Vespúcio não nasceu de família nobre, mas com certo prestígio em Florença. O pai o pôs a se educar com um tio de formação renascentista. Daí a sua paixão pelas coisas do mundo, da ciência, curiosidade, encanto com as aventuras. Leitor de Cícero, Estrabão e Ptolomeu, Vespúcio levou consigo muito desses autores, seja em seu imaginário ou em seu desejo de equiparar-se em fama e feito.
O futuro navegador foi comerciante, agente bancário, administrador e, segundo fortes indícios, cafetão e trambiqueiro, antes de construir, com sua lábia e esperteza, a sua carreira de desbravador de mares e cartógrafo. A sua vida íntima é rodeada de mistérios, com possíveis relacionamentos obscuros e filhos ilegítimos, e a companheira “oficial” parece ter sido também pensada como oportunidade de ascensão.
Amigo de Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio “roubou” partes de seus relatos de viagens, na tentativa de convencer que havia navegado mais do que de fato navegou, mas também usou da amizade para aprender e trocar; aparentemente, tinha mesmo amizade, devoção e apreço pelo outro desbravador, o que não o impediu de lhe passar a perna.
A ambigüidade do caráter do homem que deu o nome a América não faz menor sua figura, mas incita mais curiosidade e espanto ante o complexo que foi aquele momento: a descoberta do novo continente, como já sabido, estava envolta em ambição econômica, delírio religioso, sede por conhecimento, desejo de fama.
As descrições das viagens de Américo, relatadas em cartas e publicações posteriores a suas viagens, são duvidosas; as que certamente foram escritas por ele apontam imprecisões, aumentos, empréstimos de outros navegadores e até da literatura medieval.
Pelo que revelam as pesquisas de Felipe, por mérito, o continente deveria ter o nome de Cristóvão Colombo, mas um erro de leitura de Martin Waldseemüller, um dos dois cartógrafos alemães que foram responsáveis pela certidão de batismo do novo continente, foi atribuída a Américo a homenagem.
A leitura que ele fez de um dos relatos no qual Américo exaltava a si mesmo, falava das distâncias, dos mapas (que ele mesmo ajudou a confeccionar) e descrevia povos ameríndios, paisagens, costumes, o levou a acreditar na grandeza de Américo sem a investigação e comparação com os documentos que mostravam claramente que Colombo foi quem de fato mais fez; Américo Vespúcio, apesar de dizer que navegou muitas vezes, provavelmente só tenha navegado duas.
Vespúcio tem seus méritos, já que cartografou, de fato, milhares de quilômetros ainda desconhecidos ao sul do Equador, observou os habitantes, lançou-se corajosamente pela aventura de encontrar o caminho para a Ásia. Mas a biografia documentada por Felipe mostra que o florentino era um talentoso “marqueteiro” de si mesmo, pintando-se muito maior do que era e dando-se muito mais feitos do que fez.
Não há novidades no que se refere a visão dos indígenas ou às disputas entre Portugal e Espanha; nem mesmo ao Tratado de Tordesilhas, comprovadamente influenciador das aventuras portuguesas e espanholas. O que há de interessante é a constatação de que a história é uma narrativa fictícia, moldada e construída para dar sentido ao rumo que se quer; o que não a faz pequena: toda uma ficção pode terminar por influenciar e determinar o futuro de um continente. É só ver com cuidado essa América daquele tal Américo.

Américo – o homem que deu seu nome ao continente/Cia das letras/trad. Luciano Vieira Machado/308p.